sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Psiu!


Ei!
Venha até aqui
Mas silêncio
E preste atenção
- A interjeição constrói um mundo!

sábado, 5 de novembro de 2011

O Estagiário


Fui demitido. Justa causa.
Como estagiário, aprendi milhões de coisas e fui muito bem sucedido nas minhas funções. Juro que não entendo o porquê de me demitirem…
Eu tinha várias funções que fazia com excelência, entre elas:

1. Tirar xerox. 3.1 segundos por página.
2. Passar café.
3. Comprar cigarro e pão. 1 minuto e 27 segundos. Ida e volta.
4. Fazer jogos na Mega-Sena, Dupla-Sena, Lotofácil, Loteria Esportiva…

Eu era muito bom. Mesmo. Fazia tudo certinho, até que peguei uma certa confiança com o pessoal e resolvi fazer uma brincadeirinha inocente.
É impressionante o nível de stress em um ambiente de trabalho. Quis dar uma amenizada na galera, deixar o povo feliz e fui recompensado com uma bela de uma demissão por justa causa. Puta sacanagem!

Vou contar toda minha rotina desse dia catastrófico.

Era quinta-feira, 27 de março, quando cheguei ao trabalho. Nesse dia, passei na padaria no meio do caminho. Demonstrando muita proatividade, comprei pão e 3 Marlboro. Já queria ter na mão sem nem mesmo me pedirem. Quando abri a agência (sim, me deixam com a chave porque o pessoal só começa a chegar lá pelas 11h), já vi uma montanha de folhas para eu xerocar na minha mesa. Xeroquei tudo, fiz café e deixei tudo nos trinques (minha mãe que usa essa gíria).
Como tinha saído um pouco mais cedo no outro dia, deixaram um recado na minha mesa: “pegar o resultado da mega-sena na lotérica”.
Como tinha adiantado tudo, fui buscar o resultado. No meio do caminho, tive a ideia mais genial da minha vida e, consequentemente, a mais estúpida.
Peguei o resultado do jogo: 01/12/14/16/37/45. E o que fiz? Malandro que sou, peguei uns trocados e fiz uma aposta igual a essa. Joguei nos mesmos números, porque, na minha cabeça claro, minha brilhante ideia renderia boas risadas. Levei os 2 papeizinhos (o resultado do sorteio e minha aposta) para a agência novamente.

Ainda ninguém tinha dado as caras. Como sabia onde o pessoal guardava os papeis das apostas, coloquei o jogo que fiz no meio do bolinho e deixei o papel do resultado à parte.
O pessoal foi chegando e quase ninguém deu bola pros jogos. Da minha mesa, eu ficava observando tudo, até que um cara, o Daniel, começou a conferir.
Como eu realmente queria deixar o cara feliz, coloquei a aposta que fiz naquele dia por último do bolinho, que deveria ter umas 40 apostas.
Coitado, a cada volante que ele passava, eu notava a cara de desolação dele. Foi quando ele chegou ao último papel.
Já quase dormindo em cima do papel,vi ele riscando 1, 2, 3, 4, 5, 6 números. Ele deu um pulo e conferiu de novo.
Esfregou os olhos e conferiu de novo, hahahaha. Tava ridículo, mas eu tava me divertindo.
Deu um toque no cara do lado, o Rogério, pra conferir também.
Ele olhou, conferiu e gritou:
-”PUTA QUE PARRRRRRRRIUUUUUUUUUU, TAMO RICO, PORRA”. Subiu na mesa, abaixou as calças e começou a fazer girocóptero com o pau.
Óbvio que isso gerou um burburinho em toda a agência e todo mundo veio ver o que estava acontecendo.
Uns 20 caras faziam esse esquema de apostar conjuntamente. 8 deles, logo que souberam, não hesitaram: correram para o chefe e mandaram ele tomar bem no olho do cu e enfiar todas as planilhas do Excel na buceta da arrombada da mulher dele.
No meu canto, eu ria que nem um filho da puta. Todos parabenizando os ganhadores (leia-se: falsidade reinando, quero um pouco do seu dinheiro), com uns correndo pelados pela agência e outros sendo levados pela ambulância para o hospital devido às fortes dores no coração que sentiram com a notícia.
Como eu não conseguia parar de rir, uma vaquinha veio perguntar do que eu ria tanto.
Eu disse:
-”puta merda, esse jogo que ele conferiu eu fiz hoje de manhã.
A vaca me fuzilou com os olhos e gritou que nem uma putalouca:
-”PAREEEEEEEEEEM TUDO, ESSE JOGO FOI UMA MENTIRA. UMA BRINCADEIRA DE MAU GOSTO DO ESTAGIÁÁÁÁÁÁÁRIO”
Todos realmente pararam olhando pra ela. Alguns com cara de “quê?” e outros com cara de “ela tá brincando”.
O cara que tava no bilhete na mão, cujo nome desconheço, olhou o papel e viu que a data do jogo era de 27/03.
O silêncio tava absurdo e só eu continuava rindo. Ele só disse bem baixo:
- É…é de hoje.
Nesse momento, parei de rir, porque as expressões de felicidade mudaram para expressões de ‘vou te matar’.
Corri… corri tanto que nem quando eu estive com a maior caganeira do mundo eu consegui chegar tão rápido ao banheiro.
Me tranquei por lá ao som de “estagiário filho da puta”, “vou te matar” e “vou comer teu cu aqui mesmo”. Essa última foi do peladão !
Eu realmente tinha conseguido o feito de deixar aquelas pessoas com corações vazios, cheios de nada, se sentirem feliz uma vez na vida.

Deveriam me dar uma medalha por eu conseguir aquele feito inédito.
Mas não… só tentaram me linchar e colocaram um carimbo gigante na minha carteira de trabalho de demissão por justa causa. Belos companheiros!
Pelo menos levei mais 8 neguinho comigo ! Quem manda serem mal educados com o chefe. Eu não tive culpa alguma na demissão deles.
Pena que agora eles me juraram de morte…agora tô rindo de nervoso.
Falei aqui em casa que fui demitido por corte de verba (consegui justificar dizendo que mandaram mais 8 embora) e que as ligações que tenho recebido são meus amigos da faculdade passando trote.

É, amigos, descobri com isso que não se pode brincar em serviço mesmo…


(infelizmente não sei quem escreveu essa...)

domingo, 23 de outubro de 2011

O Jardim


Existe um jardim antigo com o qual às vezes sonho,
sobre o qual o sol de maio despeja um brilho tristonho;
onde as flores mais vistosas perderam a cor, secaram;
e as paredes e as colunas são idéias que passaram.

Crescem heras de entre as fendas, e o matagal desgrenhado

sufoca a pérgula, e o tanque foi pelo musgo tomado.
Pelas áleas silenciosas vê-se a erva esparsa brotar,
e o odor mofado de coisas mortas se derrama no ar.

Não há nenhuma criatura viva no espaço ao redor,

e entre a quietude das cercas não se ouve qualquer rumor.
E, enquanto ando, observo, escuto, uma ânsia às vezes me invade
de saber quando é que vi tal jardim numa outra idade.

A visão de dias idos em mim ressurge e demora,

quando olho as cenas cinzentas que sinto ter visto outrora.
E, de tristeza, estremeço ao ver que essas flores são
minhas esperanças murchas – e o jardim, meu coração.


(H.P. Lovecraft)

domingo, 11 de setembro de 2011

Rinite

Era como se lhe enfiassem, vagarosa e facilmente, uma faca de largo fio no rosto, poucos centímetros abaixo do olho esquerdo, atravessando-lhe a bochecha, a gengiva, os dentes e as cartilagens, até atingir-lhe a parte posterior-inferior do cérebro e então a levantassem torcendo, em direção a parte superior do mesmo.
Um líquido grosso e pegajoso, como sangue, decia-lhe pela garganta. Mas não era. E nem a faca existia...

sábado, 10 de setembro de 2011

She Walks in Beauty


She walks in Beauty like the night
Of cloudless climes and starry skies;
And all that's best of dark and bright
Meet in her aspect and her eyes:
Thus mellowed to that tender light
Which Heaven to gaudy day denies.

One shade the more, one ray the less,
Had half impaired the nameless grace
Which waves in every raven tress,
Or softly lightens o'er her face;
Where thoughts serenely sweet express,
How pure, how dear their dwelling-place.

And on that cheek, and o'er that brow,
So soft, so calm, yet eloquent,
The smiles that win, the tints that glow,
But tell of days in goodness spent,
A mind at peace with all below,
A heart whose love is innocent!

(Lord Byron)




Ela caminha em beleza como a noite
De clima sem nuvens e céu estrelado;
E todo a perfeição da escuridão e da luz encontra-se
Em seu semblante e seus olhos
Dessa forma enternecida até esta luz suave
Que o céus ao dia fúlgido negam.

Uma sombra a mais, um raio a menos
Teria parcialmente danificado a indescritível beleza
Que ondula em cada negra trança de seu cabelo
E ternamente brilha em seu rosto;
Onde os pensamentos serenamente expressam
Quão puro, quão querido é o lugar que habitam.

E nessa face, e sobre essa fronte
Tão gentil, tão suave contudo eloqüente,
Jazem o sorriso que conquista, as cores que dardejam
Mas que falam de dias em benevolência passados
Uma mente em paz com tudo
Um coração cujo amor é inocente.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Sintaxe à Vontade

Sem horas e sem dores,
Respeitável público pagão,
Bem-vindos ao teatro magico.

A partir de sempre
Toda cura pertence a nós.
Toda resposta e dúvida.
Todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser,
Todo verbo é livre para ser direto ou indireto.
Nenhum predicado será prejudicado,
Nem tampouco a frase, nem a crase, nem a vírgula e ponto final!
Afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas,
E estar entre vírgulas pode ser aposto,
E eu aposto o oposto: que vou cativar a todos
Sendo apenas um sujeito simples.
Um sujeito e sua oração,
Sua pressa, e sua verdade, sua fé,
Que a regência da paz sirva a todos nós.
Cegos ou não,
Que enxerguemos o fato
De termos acessórios para nossa oração.
Separados ou adjuntos, nominais ou não,
Façamos parte do contexto da crônica
E de todas as capas de edição especial.
Sejamos também o anúncio da contra-capa,
Pois ser a capa e ser contra a capa
É a beleza da contradição.
É negar a si mesmo.
E negar a si mesmo é muitas vezes
Encontrar-se com Deus.
Com o teu Deus.

Sem horas e sem dores,
Que nesse momento que cada um se encontra aqui e agora,
Um possa se encontrar no outro,
E o outro no um...
Até por que, tem horas que a gente se pergunta:
Por que é que não se junta
Tudo numa coisa só?



(O Teatro Mágico)

 

domingo, 7 de agosto de 2011

Rosa Negra Imortal

Em nome do desespero
Chamo o teu nome
Uma lamentação que suspiro
Repetidamente

Eclipse espiritual
Os portões se fecharam para a minha procura
À noite...
Um véu de estrelas, olhando
Minha sombra nasce da luz
A luz do olhar, na escuridão

Sobre águas turbulentas as memórias pairam
Infinitamente, procurando por dias e noites
A luz da lua acaricia uma colina solitária
Com a calma de um sussurro

Visto uma alma nua
Um semblante pálido na água fluente
Está frio aqui
A geada marcou meu casaco com o pó

Os olhos que se fixam no teu mudo retrato
Nós falávamos apenas por pensamentos
Juntos nós contemplamos, e esperamos
As horas trouxeram a sede e o sol nascente

Os pássaros abandonam seus descansos
As sombras douram as arcadas

Não vire o rosto em minha direção
Confrontando-me com a minha solidão
Você está numa floresta desconhecida
O pomar secreto
E a tua voz é vasta e acromática
Mas ainda tão preciosa

A canção de ninar da lua crescente te levou
Hipnotizado, seu semblante caleidoscópico
Presentou-te com um olhar vazio
Outra alma dentro do rebanho divino

Eu o guardei,
O símbolo do amaranto
Escondido dentro do templo dourado,
Até que nos regozijemos nos campos
Do fim
Quando nós dois andarmos pelas sombras
Ele queimará e desaparecerá
Rosa Negra Imortal

Está escurecendo novamente
O anoitecer se move por entre os campos
As árvores noturnas lamentam, como se soubessem que
À noite, eu sempre sonho contigo...

(Black Rose Immortal - Opeth)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Uma Crônica Crônica

Certa vez, caminhando pela cidade, sob um sol dos diabos, deparei-me com uma cena, no mínimo, constrangedora: um pedreiro gritava para o seu servente, que misturava a massa, em uma construção:
- Ô, fia  da puta, anda logo aí, carai! Fica encebano, aí, e atrasano a obra toda, cacete! - E o servente resmungava alguma coisa inaudível, conforme recebia a bronca de seu superior.
Cheguei aonde o resmungão se encontrava. E reconheci-o: era um antigo amigo, que há muito não via, com o qual estudei no ensino médio.
Por ele estar trabalhando e, também, por tê-lo visto receber aquela bronca, queria passar despercebidamente, para que ele não se sentisse constrangido. Mas, não se importando nem um pouco com a situação vexatória à qual foi exposto, e nem com a possibilidade de uma outra, ao me ver, foi logo falando:
- Porra, Luís! Nem reconhece mais os amigos?
- Eita, Lucas! Você por aqui? - e fui logo mentindo -  Nem o tinha visto! Há quanto tempo, rapaz?! Tudo certo com você?
- Pois é, Luís... Tô bem, sim... e na labuta! - referindo-se, ironicamente, ao trabalho, enquanto ria.
Parou de mexer a massa, se apoiou na enxada - E você, como tá, velho?
- Bem, também... - e, meio "assim" de estar falando com ele em horário de serviço - Velho, deixa eu ir, que devo estar te atrapalhando no serviço. Depois a gente conversa...
- Que nada, Luís. De boa... - disse ele, sossegadamente - Pode ficar tranquilo que o trabalho, aqui, é "sussa"... - e, dando continuação ao papo - Tá sumido, cara! Que que tem feito?
Constrangido por continuar a conversa e atrapalhar o trabalho dele, mas sem opções de fuga, dei uma resposta bem resumida, para que a conversa nao se prolongasse: - Então... Me mudei; estou cursando a faculdade, aqui; e estou trabalhando...
- Hummmm... Os caras me disseram que você tinha mudado... - e, sem se importar com a situação em que estava e se contrapondo à minha vontade de um diálogo breve, perguntou - E tá morando onde?
"Caralho, fodeu!", pensava eu "Quer ver o cara ser demitido na minha frente e por minha culpa? Ou então eu tomar um fumo do patrão dele, por estar aqui, conversando com ele...".
Mal respondi e ele já mandou outra: - E tá fazendo faculdade do que?
- Letras...
- O QUÊ? LETRAS? VAI VIRAR PROFESSOR, ENTÃO?! HUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAUHAUAHUAHAU... - e desandou a gargalhar escandalosamente, deixando-me extremamente constrangido. Dei um leve riso, curto e amarelo, de tão sem graça que estava e ele continuou com a pilhéria - MEU DEUS, LUÍS! VAI PAGAR TODOS OS SEUS PECADOS COMO ALUNO, AGORA! SE FODEU DE JEITO...
A terra parou. Antes de começar o curso, eu nunca havia parado para analisar essas coisas: quantos e quantos professores eu não infernizei, gritando palavrões, tirando sarro de suas caras, fazendo guerras de papéis, giz e apagadores e tantas outras coisas mais, que fiz, até quase ser expulso? (Ainda bem que minhas notas eram boas...) Mas aquelas palavras me fizeram pensar, enquanto meu amigo ainda se escarnecia de mim, "meu amigo... dessa vez você REALMENTE se fodeu..."
Nem me lembro como me desvencilhei da conversa - será que o deixei rindo sozinho? Talvez ele ainda esteja rindo de mim, lá, sem perceber que fui embora...
E, no fim disso tudo, só me pergunto uma coisa: desde quando ser professor se tornou um Karma tão ridicularizado, assim?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Jeitiminero

Sapassado, era sessetembro, taveu na cuzinha tomando uma pincumel e cuzinhanum kidicarne cum mastumate pra fazê umacarronada cum galinhassada. Quascaí de susto, quando ouvi um barui de dendoforno, pareceno um tidiguerra.
A receita mandopô midipipoca dentro da galinha prassá. O forno isquentô, u mistorô e o fiofó da galinha ispludiu!!
Nossinhora! Fiquei branco quinein um lidileite. Foi um trem doidimais!!
Quascaí dendapia! Fiquei sensabê doncovim, proncovô, oncotô.
Óiprocevê quelucura!!!
Grazadeus ninguém simaxucô!

Humbração procêis!!

domingo, 17 de julho de 2011

A Mariposa


Queria ficar sozinha. Principalmente depois daquela semana – a pior de sua vida, segundo ela. Cobranças, discussões e brigas eram algumas das suas principais pressões para desejar aquilo. E vinham de todos os lados: família, trabalho, amigos, colegas, namorado… Todos estavam contra a pobre Patrícia. E o pior é que ela nem sabia o porquê ou o que eles queriam. E, por isso, queria ser deixada em paz, para poder aliviar-se de toda essa pressão que vinha sofrendo.
Certa noite, após uma feia briga com os pais, foi dormir triste e cheia de raiva. E não com raiva só de seus pais, mas sim de todos que a cercavam. Se era pra viver daquela forma, preferia que eles não existissem. Só isso desejava naquela noite. Ficar sozinha e mais nada.
E seu desejo era tão grande que chegou a sonhar que estava sozinha. E, em seus sonhos, tudo era alegria e cores. Visões melodiosas envolviam-na, fazendo-a sentir-se livre: podia voar – os pesos que a prendiam à terra não existiam.
E então, em meio àquela viagem onírica, lembrou-se de que tudo aquilo não passava de um sonho. E, em sonho, despencou dos céus, com suas asas em chamas e os olhos cheios de lágrimas. Mas as lágrimas rompiam o surreal, estendendo-se à realidade da jovem Patrícia. Chorava. Desejava não ter ninguém com quem brigar. Ninguém que a sufocasse. Desejava ficar sozinha e só isso.
O sonho é algo espantoso. Às vezes rompe totalmente com a realidade – e de tal maneira que, ainda dormindo, percebemos que um sonho se desenrola. Mas, em outras, se aproxima de tal forma do real, que chegamos a sentir até cheiros, sabores e textura. São quase que impossíveis de se distinguir da realidade.
Há alguns casos, ainda, onde revivemos fatos nos mínimos detalhes. E também, outros, em que, percebido após sua concretização, ainda viveremos. No entanto os sonhos da bela jovem tinham um quê a mais: um quê de desejo. Um desejo ardente. Uma chama na escuridão da noite.
Fato é que muitos seres sentem-se atraídos pela luz. A mariposa, por exemplo.
Só que é fato, também, que ela acaba se expondo e ficando vulnerável por essa atração. Predadores escondem-se por detrás das sombras que a luz propaga – sempre à espreita.
E quem, de ouvidos em pé, a espreitava nas sombras, era o Mestre dos Desejos: como quem apanha uma mariposa se batendo contra a luz com um frasco, ouviu-a. Assim, “capturou-a”: sem nada saber, a jovem que desejava ficar sozinha, foi atendida.
Acordou e dirigiu-se para a cozinha. Não havia café pronto. Ficou indignada com os pais, que levantavam antes dela.
Saiu sem nada comer e dirigiu-se para o ponto de ônibus. Esperou, sem notar que não havia um único ser vivo se movendo por perto. Estava possessa pela situação que passava e pela “ingratidão” de seus pais.
Após uma hora de espera, e já atrasada, resolveu seguir a pé. Estava cega de raiva. Não notava que o grande fluxo de carros e pessoas, comum a esse horário, não existia.
Chegando a seu local de trabalho, encontrou tudo aberto e ligado, mas sem ninguém ali. Tentou encontrar os seus companheiros de trabalho, tentando imaginar “que tipo de brincadeira seria essa”. E, obviamente, sem sucesso.
Saiu do prédio, correndo, e ficou desesperada ao perceber que não havia absolutamente nada se movendo. Era como se, do nada, todos tivessem sumido. E não era isso que ela desejava?
Voltou para casa. Estava em pânico. E seus pais? Estariam em casa? Estariam no trabalho? Estariam bem? Chegou e entrou correndo em direção ao quarto dos pais. Não estavam lá. Mas seus documentos, carteiras bolsas… tudo estava ali. Tudo, menos eles.
Tremia. Teria enlouquecido? Estaria sonhando? Sim! Um sonho! Um sonho, daqueles bem reais! Não, um sonho não: um pesadelo. Isso! Queria acordar. Mas como fazê-lo? Sentou-se. Respirou fundo. Tudo era real demais! E se aquilo não fosse só um sonho? Tentou afastar esse pensamento. Dormir. Isso! Dormiria e, quando acordasse, o pesadelo teria acabado. Ou, então, seus pais teriam tempo de chegar. Estivessem onde estivessem.
 Foi até a farmácia da casa e engoliu diversos comprimidos, sem nem ler para o que serviam. Se tudo era apenas um sonho, não lhe fariam mal. Além disso, remédios dão sono, não é?
A jovem foi acometida por uma pesada sonolência em pouco tempo. E desabou. Dormiu por quase um dia todo, devido aos remédios.
Ao acordar, seu terror foi ainda maior do que antes: percebeu que, de uma forma impossível e sobrenatural, todas as pessoas haviam desaparecido. Na cidade toda. Talvez, até, no mundo todo. Como aquilo poderia ter acontecido?
Rindo, o Mestre dos Desejos se perguntava “mas não era isso o que queria?”, enquanto assistia a mariposa batendo-se, desesperada e ensandecidamente, dentro do frasco, até que acabasse por se matar, exaurindo as suas últimas forças. E sem saber o que a prendia.

sábado, 9 de julho de 2011

amorte

Conheceram-se ainda pequenos. Eram vizinhos e tinham a mesma idade. E desde que eram crianças, por volta dos quatro ou cinco anos, não conseguiam ficar longe um do outro. Chegaram ao ponto de fugir de casa para ficarem inocentemente juntos. Amavam-se incondicionalmente, antes mesmo de descobrir o que era o amor.
Cresceram unidos, quase que como irmãos. Mas, aos poucos, descobriram que o que sentiam um pelo outro estava muito além do que imaginavam. Por volta dos dezesseis anos começaram a namorar. Era um romance quase perfeito. Raramente discutiam. E quando discutiam era quase que uma brincadeira. A verdade é que um completava perfeitamente ao outro.
Os anos foram se passando, sem conseguir separá-los. Até que chegou o tempo de escolherem suas profissões. Ela queria ser professora; ele, médico. Pelo amor que nutriam, sabiam o que era melhor para cada um deles. Então, sem nenhuma objeção, decidiram por se separar durante o período dos estudos, encontrando-se durante as férias ou feriados prolongados. Então ela foi para o sul e ele para a Europa.
Durante o tempo dos estudos, mantinham contato diariamente, por telefone ou vídeo-chamadas; nas férias, alternadamente, um visitava o outro. Assim, mesmo distantes, estavam sempre próximos.
Depois de algum tempo nessa situação, os dois se formaram. E não mais perderam tempo – se casaram.
Começa, assim, a terrível tragédia do jovem casal Maia. E, para amenizar o sofrimento das famílias, pouparei o nome dos jovens.
Os primeiros anos após o casamento se aproximaram do divino, tamanho o amor e as saudades que ambos sentiam. A cada dia se apaixonavam ainda mais e mais. Além disso, a formação dos dois propiciou abastamento econômico, sem nenhum deles precisar recorrer às fortunas dos pais.
Cinco meses se passaram em total felicidade e harmonia. Um só tinha olhos para o outro. E então decidiram demonstrar ainda mais esse amor tendo um filho. Mas não o puderam. Feitos alguns exames, o Sr. e a Sr.ª Maia descobriram-se estéreis.
A tristeza do casal foi enorme. Queriam poder dar esse presente um ao outro. E, depois de algumas semanas e ainda tristes, decidiram por adotar uma criança recém-nascida, por mais que fossem demorar os documentos da adoção.
Porém, antes mesmo de darem início ao preenchimento dos formulários, um novo sofrimento se abateu sobre o jovem casal: a jovem Senhora adoeceu. Foi acometida por uma terrível e devastadora doença degenerativa, uma espécie rara de leucemia.
Desesperado, o Sr. Maia tentava todos os tipos de tratamentos possíveis, para que a doença de sua esposa parasse de evoluir e para que melhorasse. Mas não obtinha sucesso.
Investia tempo e dinheiro em pesquisas e projetos que visavam a cura ou a diminuição do impacto que a doença causava. E sempre sem deixar sua amada. Passava horas com ela, mesmo sofrendo por vê-la naquela situação. Não entendia porque tamanha tragédia se abatera sobre ela. E em todos os momentos desejava ser ele na situação da esposa, para não precisar vê-la naquela situação.
Por outro lado, a jovem agradecia por a doença tê-la afligido e não ao marido. Por mais que estivesse sofrendo, alegrava-se em ver o esposo bem e saudável, e achava que ele não deveria dar tanta atenção a ela e ao seu estado.
E a situação da jovem só piorava. As forças vitais lhe eram bruscamente sugadas. A morte rapidamente se aproximava dela.
O miserável homem já não sabia o que fazer. Desmanchava-se em lágrimas ao lado da mulher amada e que agora definhava. Não suportava a ideia de perder o amor de sua vida. Sua cabeça girava e ele não sabia, mais, o que fazer. Clamava a deus por alguma solução, mas sempre sem resposta. Desejava, mais do que tudo, ver a sua mulher em pé, saudável. A dor de vê-la naquela situação era o seu próprio inferno. Via a maior preciosidade de sua vida se esvair, aos poucos, e de forma tão triste.
Os dias passavam vagarosamente. E não deixava de parecer ao jovem Sr. Maia que tais dias eram como punhais cravados em suas costas pelo destino – ou seria por deus? Quem permitira tamanho sofrimento ao ser que ele tanto amava? Era justo fazê-los sofrer de tal maneira, sendo eles um casal tão generoso e batalhador? Não escolheram suas profissões visando o bem-estar de outras pessoas? Não chegaram ao ponto de sacrificar parte do tempo que passariam juntos por tais profissões? O homem levantava questões em relação a toda sua vida. Queria respostas para entender o que se passava. Mas nada conseguia. Jurava à sua amada morrer junto com ela, embora ela não gostasse dessa ideia.
Certa noite, após dias sem dormir, acabou por cochilar ao lado da amada. Um sono conturbado, cheio de pesadelos com temas de morte. Foi acordado pelos enfermeiros. A mulher não mais estava ali – fora levada às pressas. Os médicos diziam que seriam as últimas horas da jovem.
O homem entrou em desespero, não podendo fazer nada. Também não podia vê-la. Os médicos trabalhavam para mantê-la viva.
O que poderia fazer para salvá-la? Pensava e repensava sem encontrar soluções.  Não queria que ela morresse, de forma alguma. Mas, acaso sua morte viesse a acontecer, se mataria no mesmo instante. Já tinha até preparado um veneno, que carregava, escondidamente, ao alcance das mãos. Se recebesse a notícia, o beberia no mesmo instante.
Estava pensativo na sacada do antigo leito da esposa, que ficava no oitavo andar do prédio. Olhava desoladamente para as pessoas que passavam, lá embaixo. Via o quão pequenos eram e o quão frágil e ínfima era a vida que os seres humanos tinham. Desejou, naquele momento, ser mais que um simples homem, ter poderes para salvar a mulher que amava. Fechou os olhos e desejou, de toda a sua mente e alma, que sua mulher melhorasse, não importando o preço – mesmo se o preço fosse a sua vida. Estava disposto a se sacrificar pela esposa. Queria morrer junto com ela.
Cortou a tela de proteção da sacada com um bisturi que carregava no bolso. Preparava-se para pular. Já que o que mais amava estava prestes a morrer, por que viveria mais? Não! Tudo acabaria ali. Levaria como lembrança final a imagem da esposa ainda viva, por mais debilitada que estivesse.
Era chegada a hora. Subiu no parapeito da janela. Nesse mesmo instante, enfermeiros entraram apressadamente no quarto, gritando e chamando pelo Sr. Maia, mas sem saber o que acontecia na janela e se depararam com o homem ereto, de costas e de braços estendidos, pronto para se atirar.
Desesperados, pediam para o homem voltar. Mas ele nem os ouvia. Os enfermeiros insistiam, mas sem obter reação do homem. Então disseram que o estado de sua esposa havia se estabilizado. Ele abriu os olhos, carregados de lágrimas, e se virou. Abaixou os braços, mas não desceu. E repetiram: o estado da mulher era, agora, estável.
Sem acreditar, o homem não aceitava o que diziam, mesmo com eles dando sua palavra de que, de fato, ela havia, realmente, melhorado. Virou-se, novamente – iria pular –, quando, de repente, caminhando sozinha, embora acompanhada de médicos e enfermeiros, entrou no quarto a jovem Senhora Maia – um milagre havia acontecido! –, que o chamou.
O homem se virou vagarosamente. Poderia acreditar em seus ouvidos? Estaria sonhando ou ouvindo vozes de outros mundos? Viu-a em pé, ao lado da equipe médica. Empalideceu, sem conseguir acreditar no que via. Suas pernas fraquejaram e ele perdeu o equilíbrio: caiu. Só que caiu para a frente, na sacada, de joelhos. A mulher andava em sua direção. Segurou-lhe a cabeça e beijou-lhe a testa. Disse-lhe sentir-se melhor – e mais ainda por estar ali, com ele. E então os dois desmoronaram em lágrimas.
Vendo os novos diagnósticos da mulher, os médicos ficaram embasbacados: o sangue dela estava, agora, curado, sem sinal nenhum da doença. Um milagre, realmente, havia ocorrido. Apesar disso, ela ainda ficou alguns dias em observação. Uma semana depois, recebeu alta, saudável, como antes.
O casal voltou para casa. Não se aguentavam de alegria. Decidiram dar um tempo de outras coisas e se curtirem. Planejaram uma segunda lua de mel, com viagens e tudo o que teriam direito. Recuperariam o tempo perdido.
Na mesma noite decidiram fazer um romântico jantar à luz de velas. Prepararam tudo para que ficasse perfeito.
As horas se passavam, e o jantar com elas. O Sr. Maia se levantou para pegar as sobremesas e , quando voltava, tropeçou no tapete e caiu, batendo a cabeça em uma cadeira e desfalecendo. A esposa se levantou rapidamente para acudir o marido. Mas acabou escorregando no sorvete, espalhado pelo chão, e caindo, também. Na queda esbarrou na mesa, com força o suficiente para derrubar o candelabro. As velas acesas caíram sobre o tapete, por onde o fogo se espalhou.
A mulher, assustada e com dificuldade de locomoção, devido à pancada, engatinhou até o marido e tentou despertá-lo.
As chamas se espalhavam rapidamente, visto que a maioria dos móveis eram feitos de madeira e que o chão todo era revestido por um carpete sintético.
O homem despertou, com dificuldade. Tentaram ficar em pé. Mas devido, justamente, ao carpete sintético, o fogo produzia muita fumaça, que acabou por tomar conta do lugar e que fez com que o casal desmaiasse. Assim, morreram os dois: juntos e abraçados, incinerados em sua própria casa, que foi totalmente consumida pelas chamas.
Feita a perícia, descobriram que o sistema anti-incêndios havia sido desligado pela diarista, durante o período em que os donos da casa estavam no hospital, já que não haveria ninguém por ali. Isso explicava o porquê da casa ter sido incinerada tão rapidamente.
O que ninguém jamais saberia é que, no mesmo momento em que o pobre Sr. Maia oferecia sua vida em troca da cura e recuperação da esposa, o próprio diabo havia aceitado a sua oferta: curou-a e levou a vida dos dois, juntos.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Carolina IV - Insânia


A cada dia que passa, acredito com maior veemência estar, realmente, no inferno. As coisas que tenho visto fogem de tudo o que é concebível e aceitável para a mente humana. A situação se tornou enlouquecedora. E não sei como eu mesmo ainda não enlouqueci.
Depois do fatídico e atormentador acontecimento, do qual fomos protagonistas, não mais nos falávamos. Todos se isolaram, cada um em um canto. E creio que esse foi o nosso erro… A situação em que nos encontramos requer companheirismo, alguém para poder desabafar nossas angústias e desesperos… Ou, então, enlouqueceríamos…
E foi justamente o que aconteceu com meus companheiros. Enlouqueceram totalmente. Ter que consumir daquela carne maldita, da própria urina e permanecer isolados deve ter mexido demais com suas mentes. Agora se portam, realmente, como animais: não conversam, apenas gritam e urram. Seus olhos apresentam uma expressão assustadoramente desvairada, com aquele brilho que somente os loucos têm no olhar.
É assustador ficar, aqui, com eles… Vejo-os pela escotilha. Agora, mesmo, há dois brigando. E é uma luta insanamente violenta. Usam pedaços de pau como armas. E parecem não sentir dor. Um deles já está com um dos braços visivelmente quebrado, mas não para nem por um minuto. Mais cedo, essa mesma criatura matou um dos outros em combate. Foi onde conseguiu a fratura. O corpo ainda jaz no convés. O combate começou, inclusive, pelo domínio da carcaça. E, por mais que só comam quando tem fome, têm o instinto de guardar o alimento.
Evito comer ao máximo dessa carne… Ainda mais agora, com esses loucos rondando a embarcação. Continuo vivo graças aos ratos.
Trouxe um pouco daquela carne, antes de me trancar aqui e a tripulação enlouquecer. E, por deixá-la exposta, uma grande quantidade de ratos apareceu para comê-la. E, por pior que seja a situação, a carne dos mesmos é melhor do que a humana. Fora o fato de que os ratos acabam sendo uma distração. E acho que essa distração me impediu de ficar como as criaturas, lá fora… Isso e o fato de continuar escrevendo, o que me ajuda a esquecer da situação. Mas é difícil…
O louco do braço quebrado acaba de ter o olho arrancado pelo outro. Mesmo assim não para o confronto. Rolam selvagemente pelo chão, em cima das poças de sangue. O homem do braço quebrado teve, agora, a orelha arrancada com uma mordida. E mesmo assim a luta prossegue.
Fico imaginando o quanto e o que, mais terei que suportar até, enfim, morrer – se é que morrerei… Não são as torturas do inferno eternas?



Miguel Augusto, condenado do Carolina IV
12 de junho de 1500

(Continua...)

sábado, 25 de junho de 2011

Tão Grande Como Castilha


Se crês que tudo que tens escutado
Não tem contigo nada a ver
Estás, amigo, equivocado
Para e veja, para e veja

Todos sonhamos em ser
Um cavaleiro e ter
Algo por que lutar
E um amor que defender

Se tens um ideal, um princípio
Defende-o e aferra-te a ele
Alguém escreveu que a vida é sonho
E os sonhos, sonhos são

Sê rebelde como o mar
Sê nobre porque no final
Desta vida levarás
Tua liberdade

Não importa o quão louco te achem todos
Mantém-te firme, mantém-te em pé
Buscar teu lugar, encontrar-te a ti mesmo
É tua missão, é a razão

Grita ao céu que não
Queres ser só um mais
Grande é Castilha e o Sol
Que teu caminhar guiará

(Ancha es Castilla - Mago de Oz)


sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Morte do Leiteiro


A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

E agora, José?


A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José ?
e agora, você ?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José ?
 
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José ?
 
E agora, José ?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora ?
 
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora ?
 
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José !
 
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José ! 
José, pra onde ?

(Carlos Drummond de Andrade)