sábado, 25 de junho de 2011

Tão Grande Como Castilha


Se crês que tudo que tens escutado
Não tem contigo nada a ver
Estás, amigo, equivocado
Para e veja, para e veja

Todos sonhamos em ser
Um cavaleiro e ter
Algo por que lutar
E um amor que defender

Se tens um ideal, um princípio
Defende-o e aferra-te a ele
Alguém escreveu que a vida é sonho
E os sonhos, sonhos são

Sê rebelde como o mar
Sê nobre porque no final
Desta vida levarás
Tua liberdade

Não importa o quão louco te achem todos
Mantém-te firme, mantém-te em pé
Buscar teu lugar, encontrar-te a ti mesmo
É tua missão, é a razão

Grita ao céu que não
Queres ser só um mais
Grande é Castilha e o Sol
Que teu caminhar guiará

(Ancha es Castilla - Mago de Oz)


sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Morte do Leiteiro


A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

E agora, José?


A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José ?
e agora, você ?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José ?
 
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José ?
 
E agora, José ?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora ?
 
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora ?
 
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José !
 
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José ! 
José, pra onde ?

(Carlos Drummond de Andrade)

sexta-feira, 17 de junho de 2011

ABCDEtc...

 
A - Primeira letra do alfabeto. A segunda é "L" e a terceira é "F".

AH - Interjeição. Usada para indicar espanto, admiração, medo. Curiosamente,
também são as iniciais de Alfred Hitchcock.

AHN? O quê? Hein? Sério? Repete que eu sou halterofilista.

AI - Interjeição. Denota dor, apreensão ou êxtase, como em "Ai que bom, ai
que bom". Arcaico: Ato Institucional.

AI, AI - Expressão sarcástica, de troça. O mesmo que "Como nós estamos
sensíveis hoje, hein, Juvenal?"

AI, AI, AI - Expressão de mau pressentimento, de que em boa coisa isto não
pode dar, de olhem lá o que vocês vão fazer, gente.

AI, AI, AI, AI, AI - O mesmo que "Ai, ai, ai", mas com mais dados sobre a
gravidade da situação. Geralmente precede uma reprimenda ou uma fuga.

B - Primeira letra de Bach, Beethoven, Brahms, Bela Bartok, Brecht, Becket,
Borges e Bergman, mas também de Bigorrilho, o que destrói qualquer tese.

BB - Banco do Brasil, Brigitte Bardot, coisas do tipo.

BELELÉU - Lugar de localização indefinida. Em alguns mapas fica além das
Cucuias, em outros faz fronteira com Cafundó do Judas e Raio Que os Parta do
Norte. Beleléu tem algumas características estranhas. Nenhum dos seus matos
tem cachorro, todas as suas vacas estão no brejo - e todos os seus
economistas são brasileiros.

C - Uma das nossas letras mais populares. Sem ela não haveria carnaval,
caipirinha, cafuné e crédito e a coisa seria bem mais difícil.

CÁ - Advérbio. Quer dizer "aqui no Brasil". Também é o nome, em português,
da letra K, de kafkiano, o que já deveria ter-nos alertado.

CÊ - Diminutivo de "você", como em "cê soube?" ou "cês me pagam". Também se
usa "cezinho", mas só em casos muito particulares, e com a luz apagada.

CI - Ser mitológico. Na cultura indígena do Amazonas, a mãe de tudo, a que
está por trás de todas as coisas, a responsável por tudo que acontece (ver
CIA).

CO - "O outro." Como em co-piloto (o outro piloto), coadjuvante (não o
adjuvante principal, o outro) e coabitação (morar com a "outra").

CÓ - O singular de "cós".

CÓS - Os "cós das calças", que até hoje ninguém descobriu o que são.

CUCUIAS - Arquipélago, provavelmente no Caribe, mas no lado da sombra... A
única coisa certa que se sabe sobre as Ilhas Cucuias é que ficam longe das
Ilhas Cayman. Celebrizadas no poema ufanista anônimo Povo de Turistas ("Como
viajam os brasileiros/ donos de um elã incomum./ A maioria vai pras Cucuias/
e o resto vai pra Cancun").

D - 500 em latim. Vale meio M, cinco Cs e dez Ls.

DDD - Discagem Direta a Distância, ou Dedo Dolorido De tanto tentar.

DE - Prefixo que significa o contrário, o avesso. Como em "decúbito", ou com
o cúbito para cima.

E - Conjunção. Importantíssima. Sem o E, muitas frases ficariam
ininteligíveis, dificultando ainda mais a comunicação entre as pessoas. Em
compensação, não existiriam as duplas caipiras.

E? - E daí? Continue! Qual é a conclusão? Qual é o sentido dessa história
toda? Onde você quer chegar, pombas? Vamos, desembuche!

É - Afirmativa, confirmação, concordância ou resignação. Também usado na
forma reflexiva ("Pois é"), na forma interrogativa ("É?"), na forma
reflexiva interrogativa ("Né?") e na forma interrogativa retórico-reflexiva
("Ah, é?").

É... - O mesmo que "Pois é", mas com uma carga filosófica maior. Tudo que
tem reticências é filosófico. Ou irônico, que é o filosófico que dá briga.

EH, EH, EH, EH - Risinho safado. Também dá briga.

EPA! Exclamativo. Usado em situações-limite, como beliscões extemporâneos na
bunda, principalmente se ela for a sua. Outras formas: "Opa" (ver OPA),
"Peraí"' (ver "PÔ), "Péralá!"' (ver AI, AI, AI).

F - Ou "efe". Uma das oito letras com duas sílabas do alfabeto. "Doblevê"
tem três, "ipsilone" tem quatro e "dobliú", depende. Se você diz o "bliú"
ligeiro, é uma sílaba só, se for baiano são duas.

PH - Efe no tempo em que era "ephe".

G - De "gongórico", nome dado a tudo que soa como um gongo.

GA-GA-GA-GA-GA... Gago.

H - A letra "agá". Também pode ser os edifícios do Congresso, em Brasília.
Nesse caso, saia de perto.

HONTEM - Ontem, ontem.

I - Monograma do Marco Maciel.

IH - Expressão de mau pressentimento. Como em "Ih, outro discurso do
Simon..."

IIIIIII - Expressão de mau pressentimento quando o pressentido já começou a
acontecer e não há nada a fazer senão se preparar para o pior. Ou emigrar,
claro. Substitui as frases "Eu sabia...", "Esse filme eu já vi..." "Lá vamos
nós outra vez..." e "Ai, ai, ai" (ver AI, AI, AI, AI, AI) IIIIIIIIIIIIIII
(Continua) - Um "liiiih" que não encontra resistência e se prolonga
indefinidamente, acompanhando a curvatura da Terra. No Brasil há casos de
"liiihs" que começaram há 35 anos e ainda não terminaram.

J - Uma das letras mais brasileiras do alfabeto. A primeira letra de jabá,
jabaculê, jeitinho, jogada e joint venture. Está na nossa origem ("Já fui!
Já fui!", as palavras que acompanham nossa concepção) e no nosso fim
(jazigo, já era).

JÁ - Agora.

JÁ, JÁ - Daqui a pouco.

JESUS! - Apelo a um poder mais alto, ignorando-se os trâmites normais e
todas as instâncias intermediárias - santos, secretárias, seguranças - para
ir direto em quem manda, ou pelo menos no seu filho.

JURADO - Membro de um júri. Marcado para morrer. Ou, dependendo de onde for
o julgamento, as duas coisas juntas.

K - Não existe em português, mas ninguém conseguiria dizer "um kantiano
kitsch de kilt num kart" sem ela, a não ser que fosse fanho (ver ANHO).
Embora seja pouco provável que alguém, algum dia, precise usar esta frase.

L - O "ele" minúsculo é igual ao "l" e o maiúsculo também, só que com
sombra.

LOT - Ou Ló. De uma vez por todas, preste atenção. Ló era o do pão e dos
escravos que jogavam caxangá (ver CAXANQUÊ?), Jó era o das provações de Deus
e da mulher que virou estátua de sal. Espera um pouquinho. Jó era o dos
escravos, Ló era o do pão e da estátua. Não! A mulher que se transformou em
estátua e os escravos eram do Jó, Ló era só o do pão. Não! Os escravos eram
da mulher do Jó, o Ló era o das provações e o Jó virou pão. Não! Os escravos
eram da mulher do Ló, que era uma das provações do Jó, que virou estátua de
sal mas do Ló. Não! O Ló virou Jó e... Esquece.

M - Primeira letra de "eme".

N - O "ene", não.

O - A letra símbolo da Kabala. A Cobra da Vida comendo a si mesma por toda a
Eternidade. A letra que é um número, e o número que é um vazio. O Tudo e o
Nada num mesmo signo. Em inglês, "OK". Em português: "Aqui, ó."

Ó - Interjeição. Como em "Ó vida" ou "Ó tempos, ó modos" e, especialmente,
"Ó Minas Gerais".

OBA - Epa, no bom sentido.

OH - Interjeição. Como em "Oh, não!" e, principalmente em filme americano
dublado, "Oh, sim!"

OI - Alô.

OI, OI, OI - "Ai, ai, ai" mais baixinho. (Ver "iiiiiiiih") 
 
PÔ - Abreviatura de "positivamente", como em "Positivamente, assim não dá".

QRST - Único grupo de quatro letras sucessivas no alfabeto que não inclui
uma vogal. E você sabe o que isso significa...

UI - "Epa" de quem está gostando.

V - De Verdade e Vileza, Verme e Virgem, Veneno e Valium, é a única letra do
alfabeto que, de cabeça para baixo, vira uma casinha. É preciso dizer mais?

XYZ - As últimas letras do alfabeto. Pronuncia-se "xyz". O "X" e o "Z" são,
juntos com o "K", as letras mais duras e antipáticas do alfabeto e existe
uma suspeita de que sejam nazistas. Não admira que o "Y", entre as duas,
esteja com os braços para cima, apavorado.
 
 
(Luiz Fernando Veríssimo) 

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Travesseiro de Penas


Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o temperamento sisudo do marido lhe gelou as sonhadas fantasias de noiva. E no entanto ela o amava muito, às vezes com um ligeiro estremecimento quando, à noite, voltando juntos para casa, dava uma furtiva olhadela à alta estatura de Jordán, que na última hora não pronunciara uma só palavra. Ele também a amava muito, profundamente, mas sobre isso não dizia nada.
Durante três meses – casaram-se em abril – viveram uma felicidade peculiar. Certamente ela teria desejado menos sobriedade nesse rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva e menos controlada. Mas o impassível semblante do marido sempre a refreava.
A casa onde moravam também contribuía para seus calafrios. A brancura do pátio silencioso
– frisos, colunas, estátuas de mármore – produzia a outonal impressão de um palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem uma única e superficial fissura nas altas paredes, corroborava a desconfortável sensação de frio. Na passagem de uma peça para outra, os passos ecoavam em toda a casa, como se um longo abandono lhe tivesse aguçado a ressonância.
Nesse singular ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Lançara um véu sobre os antigos sonhos e vivia como adormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada até a hora em que chegasse o marido.
Não surpreendia que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de influenza que acabou se arrastando, insidiosamente, por dias e dias. Não melhorava nunca. Num fim de tarde pôde ir ao jardim, apoiada no braço do marido. Olhava para um lado e outro, indiferente. Jordán, com ternura, passou-lhe a mão na cabeça, e Alicia pôs-se a chorar, pendurada em seu pescoço. Chorou longamente todo o seu espanto calado, redobrando o pranto à mínima carícia. Depois os soluços foram diminuindo e ela continuou abraçada nele, sem mover-se e sem nada dizer.
Foi esse o último dia em que Alicia se levantou.
No dia seguinte amanheceu prostrada. O médico de Jordán veio vê-la e recomendou repouso absoluto.
– Não sei o que ela tem – disse a Jordán em voz baixa, já na porta da rua. – É uma fraqueza que não entendo. Sem vômitos, sem nada... Se amanhã despertar como hoje, manda me chamar.
No outro dia Alicia estava pior. Veio o médico e constatou uma anemia em progresso acelerado, completamente inexplicável.
Alicia não teve mais desmaios, mas era visível que caminhava para o fim. Durante o dia todo o quarto permanecia com a luz acesa e em silêncio. Corriam as horas sem que se ouvisse o menor ruído. Ela dormitava.
Jordán passava o dia na sala, também com todas as luzes acesas. Andava sem cessar de um lado para outro, com incansável obstinação, o carpete abafando-lhe os passos. De vez em quando entrava no quarto e continuava em seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um instante em cada extremo a olhar para a mulher.
Em seguida Alicia começou a ter alucinações. A princípio eram confusas, variadas, depois se fixaram no chão do quarto. Com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa senão fitar o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, com o olhar fixo, abriu a boca para gritar, com as narinas e os lábios perlando suor.
– Jordán! Jordán! – clamou, por fim, rígida de espanto e sem deixar de vigiar o tapete.
Jordán acudiu e Alicia, ao vê-lo, deu um grito.
– Sou eu, Alicia, sou eu!
Ela olhou como perdida, logo para o tapete, tornou a olhar para o marido e, depois de um longo momento de atônita confrontação, acalmou-se. Sorriu e, tomando entre as suas a mão de Jordán, acariciou-a por uma longa meia hora, sempre tremendo.
Entre suas alucinações mais pertinazes, houve uma que era a de um antropóide no tapete, erguendo-se na ponta dos dedos e com o olhar cravado nela.
Os médicos voltaram a examiná-la, sempre em vão. Era uma vida que se acabava, dia a dia se dessangrando, hora a hora, sem que soubessem como e por que aquilo acontecia. Na última consulta, Alicia jazia em estupor enquanto lhe verificavam o pulso, um passando ao outro aquele braço inerte. Demoradamente a observaram em silêncio e depois passaram à sala.
– É um caso gravíssimo – e o médico de Jordán balançou a cabeça, desalentado. – Pouco ou nada se pode fazer.
– Era só o que faltava – desabafou Jordán, dedos tamborilando na mesa com violência.
Alicia se esvaía em subdelírios de anemia. Nas primeiras horas da tarde seu mal se atenuava, agravando-se com a chegada da noite. A doença parecia não avançar durante o dia, mas no dia seguinte ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia mesmo que tão-só durante a noite sua vida escorria em novas vagas de sangue. Ao despertar, tinha a sensação de estar esmagada na cama por um milhão de quilos. Desde o terceiro dia essa prostração não mais a abandonara. Mal podia mover a cabeça e não quis que trocassem os lençóis e a fronha. Seus terrores crepusculares avançavam agora sob a forma de monstros que se arrastavam até a cama e subiam laboriosamente pela colcha.
Perdeu logo a consciência. Nos dois dias finais delirou sem cessar à meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, ouviam-se apenas o delírio monótono que vinha da cama e os surdos passos de Jordán.
Alicia morreu, por fim. A criada, entrando mais tarde no quarto para arrumar a cama vazia, olhou intrigada para o travesseiro.
– Senhor – chamou, em voz baixa. – No travesseiro há manchas que parecem de sangue.
Jordán aproximou-se rapidamente. De fato, na fronha, em ambos os lados da concavidade deixada pela cabeça de Alicia, viam-se manchas escuras.
– Parecem picadas – murmurou a criada, depois de um instante de atenta observação.
– Traz a lâmpada pra cá.
A criada levantou o travesseiro e logo o deixou cair, pálida, trêmula. Sem saber por quê, Jordán sentiu que seus cabelos se eriçavam.
– O que houve? – perguntou, rouco.
– Pesa muito – gaguejou a criada, sem deixar de tremer.
Jordán o ergueu. Pesava demais. Levaram-no para a mesa da sala e ali Jordán cortou a fronha e o envoltório interno. As penas à superfície voaram, e a criada, com a boca escancarada, deu um grito de pavor, levando as mãos crispadas aos bandós. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola vivente e viscosa. Estava tão inchado que quase não se distinguia sua boca.
Noite a noite, desde que Alicia ficara acamada, aplicara aquela boca – aquela tromba, melhor dito – às têmporas dela, para sugar-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A mudança diária da fronha havia impedido, a princípio, seu desenvolvimento, mas desde que a moça não pudera mais mover-se, a sucção fora vertiginosa. Em cinco dias e cinco noites ele esvaziara Alicia.
Esses parasitas das aves, diminutos no meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece lhes ser especialmente favorável e não é raro que sejam encontrados em travesseiros de penas.


(Horácio Quiroga)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Arquivo

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal.


(Victor Giudice)

domingo, 12 de junho de 2011

A Dança da Morte

Deixe-me contar-lhe uma história de arrepiar os cabelos
Sobre coisas que vi
Uma noite vagando pelos pantanais
Eu havia tomado só um drinque, e nada mais

Estava vagando, aproveitando a brilhante luz da lua
Olhando as estrelas
Sem perceber uma presença perto de mim
Observando os meus movimentos
Assustado caí de joelhos e desmaiei
Quando algo saltou de trás das árvores sobre mim
Me levando para um lugar profano
E lá que caí em desgraça

E então Eles me invocaram para juntar-me a eles
Na dança dos mortos
Para o círculo de fogo os segui
E para o centro fui levado
Era como se o tempo tivesse parado
Ainda estava entorpecido pelo medo mas eu queria ir
E as chamas do fogo não me feriam
Enquanto andava sobre as brasas

E senti que estava em transe
E meu espírito foi tirado de mim
Se alguém ao menos tivesse a chance
De testemunhar o que aconteceu comigo

E eu dancei e pulei e cantei com eles
Todos tinham a morte em seus olhos
Figuras sem vida todos eram zumbis
Que vieram do inferno
Quando dançava com os mortos
Meu espírito estava livre rindo e uivando para mim
Sob o meu corpo morto-vivo dançava o círculo dos mortos

Até que chegou a hora de nos reunirmos
E meu espírito voltou
Não sabia se estava vivo ou morto
Enquanto os outros juntavam-se em cima de mim

Por sorte uma confusão começou
Que desviou a atenção de mim
E quando eles desviaram o olhar
Foi o momento em que fugi

Corri como nunca, mais rápido que o vento
Mas não olhei para trás
Uma coisa que eu não me atreveria
Olhava apenas para frente

Quando você souber que sua hora se aproxima
Saberá que está preparado para isso
Diga seu último adeus a todos
Beba e reze por isso

Quando você está deitado dormindo, em sua cama
E acorda de seus sonhos para ir dançar com os mortos
Quando você está deitado dormindo, em sua cama
E acorda de seus sonhos para ir dançar com os mortos
Até hoje não sei e acho que nunca saberei
Por que eles me deixaram partir
Mas nunca mais irei dançar
Até que eu dance com os mortos
(Dance of Death - Iron Maiden)

Olhos



(Arnaldo Antunes)

Humanos



(Arnaldo Antunes)

As Coisas

As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz.
***
A vista daqui é linda. Ainda. Que não seja. Linda para outra.  Vista que a. Avista. Daqui é linda. Se não for vista a vista. Daqui ainda é. Linda. Ainda que não seja. Vista ainda. Que não se veja. Talvez assim seja. Mais linda. Ainda.
***
Eu coberto de pele coberta de pano coberto de ar e debaixo do cimento terra sob a terra petróleo correndo e o lento apagamento do sol por cima de tudo e depois do sol outras estrelas se apagando mais rapidamente que a chegada de sua luz até aqui.
***
Todas as coisas do mundo não cabem numa idéia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo.
***
Todos eles traziam sacolas, que pareciam muito pesadas. Amarraram bem seus cavalos e um deles adiantou-se em direção a uma rocha e gritou: "Abre-te, cérebro!"



(Arnaldo Antunes)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Valhalla Me Aguarda

O sangue esguicha do corte
Que é grande e profundo
E antes que eu me vire
Ele cai de joelhos

Um som claro da espada ressoa
Quando aço encontra aço
Ouço o som de madeira quebrar
Uma espada atravessa o meu escudo

Largo o escudo e agarro meu machado
 Uma arma em cada punho
Com um golpe violento faço o seu capacete quebrar
O machado corta até os dentes
Arranco o machado da cabeça
coberto de sangue e miolos
Deixo o corpo caído sem vida
Pronto para atacar novamente

Minha espada rasga roupas e pele
Como uma faca quente corta a neve
Sorrio com os gritos dos bastardos
Quando eu torço a espada

Ergo o meu machado acima de minha cabeça
Meus olhos flamejam de raiva
Mais sangue ainda será derramado
Este é um dia vitorioso!

O sangue esguicha do corte
Que é grande e profundo
Quando eles se viram
Eu caio de joelhos

Espada em uma mão e o machado na outra
Valhalla aguarda! Logo morrerei
Espada em uma mão e o machado na outra
Valhalla me aguarda, quando eu morrer
Uma pele de urso cobrirá as minhas costas
Um crânio de lobo, a minha cabeça
Valhalla me aguarda...


(Valhall Awaits Me - Amon Amarth)

terça-feira, 7 de junho de 2011

Carolina IV - Antropofagia

Depois de tantas tragédias e desilusões em nossas vidas – que nos levaram a desejar (em todo instante) a morte, e eu ter dito que não mais escreveria –, fatos atormentadores forçam-me a ter que prosseguir com os trágicos e fatídicos relatos do Carolina IV e sua tripulação – ou o que dela restou… -, senão enlouquecerei.
Não mais consegui dormir desde o terrível incidente que ocorreu nesse meio tempo de mudez – e se realmente existe um deus, espero que perdoe-nos por tamanha monstruosidade!
Após o ilusório “encontro” com a ilha, fomos carregados para o norte. Estávamos, todos, desiludidos – como se essa desilusão tivesse se ido… -, apenas aguardando a Morte, que insiste em se demorar… - como desejo que ela já tivesse chego!
Nada fazíamos. Passávamos a maior parte do tempo no convés – mas sem chorar: não mais tínhamos lágrimas e, também, não queríamos o mar, com elas, alimentar –, apenas olhávamos o céu e o longínquo horizonte. Descíamos apenas para (tentar) dormir ou comer. Essa ultima já sem nenhum gosto ou prazer – e o que gerava um terrível paradoxo, visto que comíamos para mantermo-nos vivos.
Nossas provisões, estimadas para, no máximo, três semanas, duraram bem mais do que o previsto: cerca de cinco semanas. E duraram todo esse tempo porque, fora o fato de sermos, agora, só sete, mal comíamos...
Mal comíamos, mas se acabaram. E isso, depois de alguns dias, tornou-se desesperador: não mais tínhamos forças. A visão nos falhava. Definhávamos lentamente. Cinco dias que passamos apenas com água. Parecíamos fadados àquela tenebrosa morte.
E então nos sobreveio o pior dos pesadelos: um de nossos companheiros – ignoro o seu nome, por não mais nos considerar seres humanos –, fraco pela inanição, tropeçou na escadaria, enquanto descia e, por mais que a escada não fosse alta,  feriu-se gravemente, chocando sua cabeça contra a quina de um caixote. Entrou em um profundo sono – uma semimorte, um estado que beirava o desmaio e a morte – do qual não mais acordava. Dois dias se passaram sem ele dar sinais de recobrar os sentidos.
Como já disse anteriormente, não mais somos homens. Somos animais. Cruéis animais. E, como tais, o instinto se sobrepõe à razão: enquanto cuidávamos, todos, de nosso companheiro e o víamos naquele estado, o animal que nos habitava aflorou, despertado pela fome. Em desvairo coletivo, iniciamos um banquete insano: devoramos vorazmente o homem do qual cuidávamos – homem que estava vivo e que abruptamente despertou, aos urros de dor e horror, sendo lentamente consumido pelos próprios companheiros!
Ainda posso ouvir seus gritos! Ecoam em minha cabeça! Não sei por quanto tempo, mais, me manterei são… e por isso escrevo – para tentar manter uma conexão com o real e não enlouquecer…
Não consigo imaginar como serão os próximos dias… Ainda dispomos de um pouco daquela carne… e também não tenho ideia de como esse abominável ato afetou meus companheiros… Mas sinto que o verdadeiro terror ainda está por vir…



Miguel Augusto, criatura do Carolina IV
07 de junho de 1500