terça-feira, 7 de junho de 2011

Carolina IV - Antropofagia

Depois de tantas tragédias e desilusões em nossas vidas – que nos levaram a desejar (em todo instante) a morte, e eu ter dito que não mais escreveria –, fatos atormentadores forçam-me a ter que prosseguir com os trágicos e fatídicos relatos do Carolina IV e sua tripulação – ou o que dela restou… -, senão enlouquecerei.
Não mais consegui dormir desde o terrível incidente que ocorreu nesse meio tempo de mudez – e se realmente existe um deus, espero que perdoe-nos por tamanha monstruosidade!
Após o ilusório “encontro” com a ilha, fomos carregados para o norte. Estávamos, todos, desiludidos – como se essa desilusão tivesse se ido… -, apenas aguardando a Morte, que insiste em se demorar… - como desejo que ela já tivesse chego!
Nada fazíamos. Passávamos a maior parte do tempo no convés – mas sem chorar: não mais tínhamos lágrimas e, também, não queríamos o mar, com elas, alimentar –, apenas olhávamos o céu e o longínquo horizonte. Descíamos apenas para (tentar) dormir ou comer. Essa ultima já sem nenhum gosto ou prazer – e o que gerava um terrível paradoxo, visto que comíamos para mantermo-nos vivos.
Nossas provisões, estimadas para, no máximo, três semanas, duraram bem mais do que o previsto: cerca de cinco semanas. E duraram todo esse tempo porque, fora o fato de sermos, agora, só sete, mal comíamos...
Mal comíamos, mas se acabaram. E isso, depois de alguns dias, tornou-se desesperador: não mais tínhamos forças. A visão nos falhava. Definhávamos lentamente. Cinco dias que passamos apenas com água. Parecíamos fadados àquela tenebrosa morte.
E então nos sobreveio o pior dos pesadelos: um de nossos companheiros – ignoro o seu nome, por não mais nos considerar seres humanos –, fraco pela inanição, tropeçou na escadaria, enquanto descia e, por mais que a escada não fosse alta,  feriu-se gravemente, chocando sua cabeça contra a quina de um caixote. Entrou em um profundo sono – uma semimorte, um estado que beirava o desmaio e a morte – do qual não mais acordava. Dois dias se passaram sem ele dar sinais de recobrar os sentidos.
Como já disse anteriormente, não mais somos homens. Somos animais. Cruéis animais. E, como tais, o instinto se sobrepõe à razão: enquanto cuidávamos, todos, de nosso companheiro e o víamos naquele estado, o animal que nos habitava aflorou, despertado pela fome. Em desvairo coletivo, iniciamos um banquete insano: devoramos vorazmente o homem do qual cuidávamos – homem que estava vivo e que abruptamente despertou, aos urros de dor e horror, sendo lentamente consumido pelos próprios companheiros!
Ainda posso ouvir seus gritos! Ecoam em minha cabeça! Não sei por quanto tempo, mais, me manterei são… e por isso escrevo – para tentar manter uma conexão com o real e não enlouquecer…
Não consigo imaginar como serão os próximos dias… Ainda dispomos de um pouco daquela carne… e também não tenho ideia de como esse abominável ato afetou meus companheiros… Mas sinto que o verdadeiro terror ainda está por vir…



Miguel Augusto, criatura do Carolina IV
07 de junho de 1500


Um comentário: