segunda-feira, 30 de maio de 2011

O Homem do Cutelo

O cutelo cortava até os ossos, sem muita dificuldade. Seus golpes eram precisos. A experiência fazia-o perito. A vítima já não demonstrava reações. Decepou-lhe a cabeça com um único e forte golpe. Pouco sangue jorrava. Pedaços de carne sobre a mesa, que foram postos em uma bandeja. Seriam, depois, comidos...
O açougueiro prepara outra peça...

domingo, 29 de maio de 2011

Berenice

Dicebant mihi sodalez, si sepulchrum amicae visifarem, curas meas aliquantulum fore levatas. (Meus companheiros me asseguravam que visitado o túmulo de minha amiga conseguiria, em parte, alívio para as minhas tristezas.)
Ebn ZAIAT

A DESGRAÇA É VARIADA. O infortúnio da terra é multiforme. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, nitidamente misturadas . Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris! Como de um exemplo de beleza, derivei eu uma imagem de desencanto? Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? E que, assim como na ética o mal é uma conseqüência do bem, da mesma realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido.
Meu nome de batismo é Egeu. O de minha família não revelarei. Contudo não há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada de uma raça de visionários. Em muitos pormenores notáveis, do caráter da mansão familiar, nas pinturas do salão principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas de armas, porém, mais especialmente, na galeria de quadros no estilo da biblioteca e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há mais que suficiente prova a justificar aquela denominação.
Recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligados àquela sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas é ocioso dizer que não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Vós negais isto. Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro convencer os demais. Sinto, porém, uma lembrança de formas aéreas, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais, embora tristes; uma lembrança que não consigo anular; uma reminiscência semelhante a uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconstante; e como uma sombra, também, na impossibilidade de livrar-me dela, enquanto a luz de minha razão existir.
Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que parecia, mas não era, o nada, para logo cair nas verdadeiras regiões da terra das fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento monástico e da erudição. Não é de admirar que tenha lançado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é estranho que ao perpassar dos anos e quando o apogeu da maturidade me encontrou ainda na mansão de meus pais, uma maravilhosa inércia tombado sobre as fontes da minha vida maravilhosa, a total inversão que se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto que as loucas idéias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, na realidade, a minha absoluta e única existência.
Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos, no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia; ela, ágil, graciosa e exuberante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para mim, estudos do claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio coração e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa meditação . Ela, divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu caminho, ou no vôo silente das horas de asas lutuosas. Berenice!
Quando lhe invoco o nome... Berenice!, das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações. Ah, bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos dias de sua jovialidade e alegria! Oh, deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh, sílfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, náiade à beira de suas fontes! E depois... depois tudo é mistério e uma estória que não deveria ser contada.
Uma doença...uma doença - uma fatal doença - soprou como um símum sobre seu corpo. E precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível, perturbando-lhe a própria personalidade. Ai! O destruidor veio e se foi, e a vítima…onde está ela? Não a conhecia... ou não mais a conhecia como Berenice!
Entre a numerosa série de males acarretados por aquela fatal e primeira doença, que realizou tão horrível revolução no ser moral e físico de minha prima, pode-se mencionar, como o mais aflitivo e o mais obstinado, uma espécie de epilepsia, que não poucas vezes, terminava em catalepsia, muito semelhante à morte efetiva e da qual despertava ela, quase sempre, duma maneira assustadoramente subitânea.
Entrementes, minha própria doença aumentava, pois fora dito que para ela não havia remédio, e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma nova e extraordinária, que, hora em hora, de minuto em minuto, crescia em vigor e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta monomania, se assim posso chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito que a ciência metafísica denomina “faculdades da atenção".
É mais que provável não me entenderem. Mas temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma idéia adequada daquela nervosa intensidade da atenção com que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica) se aplicava e absorvia na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.
Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção cravada em alguma frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico, ficar absorto, durante a melhor parte dum dia de verão em contemplação duma sombra extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite observar a chama inquieta duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias inteiros com o perfume duma flor; repetir monotonamente, alguma palavra comum, até que o som, a repetição freqüente, cesse de representar ao espírito a menor ideia; perder toda a sensação de movimento ou de existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente mantida, tais eram as mais comuns e menos perniciosas aberrações, provocadas pelo estado de minhas faculdades mentais não, de fato, absolutamente sem exemplo, mas certamente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.
Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos de seu natural triviais, não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão à meditação, comum a toda a humanidade e mais especialmente do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou uma exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente dela . Naquele caso, o sonhador, ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não trivial, perde, sem o perceber, de vista este objeto, através duma imensidade de deduções e sugestões deles provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repletos de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum causa primária de suas meditações, inteiramente esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por intermédio de minha visão doentia, uma importância irreal e refratária. Poucas ou nenhumas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente , ao objeto primitivo como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis, e ao fim do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado que era a característica principal da doença. Em uma palavra: as faculdades da mente mais particularmente exercitadas em mim eram, como já disse antes, as da atenção, ao passo que no sonhador-acordado são as especulativas.
Naquela época, os meus livros, se não contribuíam eficazmente para irritar a moléstia, participavam largamente, como é fácil perceber-se, pela sua natureza imaginativa e inconseqüente, das qualidades características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano, Coelius Secundus Curio de amplitudine beati regni dei; da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus; do De Carne Christí, de Tertuliano, no qual a paradoxal sentença: Mortuus' est Dei filius; credible est quia ineptum est; et sepultus resurrexít; certum est quia impossibíle est, absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.
Dessa forma, minha razão, perturbada, no seu equilíbrio por coisas simplesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo de que fala Ptolomeu Hefestião, o qual resistia inabalável a questão da violência humana e ao furioso ataque das águas e ventos, mas tremia ao simples toque da flor chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado mortal de Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza tive dificuldade em explicar, tal não se deu absolutamente.
Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me dava realmente pena e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, com amargura, nas causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificação tão estranha. Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha doença, tais como teriam ocorrido em idênticas circunstâncias, à massa ordinária dos homens. Fiel a seu próprio caráter, meu desarranjo mental preocupava-se com as menos importantes porém mais chocantes mudanças operadas na constituição física de Berenice, na estranha e mais espantosa alteração de sua personalidade.
Posso afirmar que nunca amara minha prima, durante os dias mais brilhantes de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser da terra, um ser carnal, mas como a abstração de tal ser; não como uma coisa para admirar, mas para ser analisada; não como objeto para amar, mas como o tema da mais absoluta, embora inconstante, especulação. E agora... agora eu estremecia na sua presença e empalidecia ao vê-la aproximar-se; contudo, lamentando amargamente sua deplorável decadência, lembrei-me de que ela me havia amado muito tempo, e, num momento fatal, falei-lhe em casamento.
Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tarde de inverno de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, me sentei no mais recôndito gabinete da biblioteca. Julgava estar sozinho, mas erguendo a vista divisei Berenice, em pé, à minha frente. Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinérias roupagens que lhe caíam em torno do corpo, que lhe deu aquele contorno indeciso e trêmulo? Não sei dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu por forma alguma podia emitir uma só sílaba.
Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma, e recostando-me na cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com os olhos fixos no seu vulto. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-se afinal em seu rosto.A fronte era alta e muito pálida, e de uma placidez singular. O cabelo, outrora negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas com numerosos anéis, agora de um amarelo vivo, em chocante discordância, pelo seu caráter fantástico, com a melancolia que lhe dominava o rosto. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas.
Desviei involuntariamente a vista daquele olhar vítreo para olhar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus que eu nunca os tivesse visto, tendo-os visto, tivesse morrido!
O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia saído do aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia saído, ai de mim!, e não queria sair o espectro branco de seus dentes lívidos. Nem uma mancha se via em sua superfície, nem uma pinta no esmalte, nem uma falha nas suas pontas, que aquele breve tempo de seu sorriso não houvesse gravado na minha memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes.
Os dentes!... Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda parte, visíveis, palpáveis. Diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo exterior, só pensava naqueles dentes. Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação.
Eles, somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvi-os em todas as direções. Observava-lhes as características. Detinha-me em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conformação refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhe em imaginação, faculdades de sentimento e de sensação, e, do mesmo quando desprovidos dos lábios, capacidade da expressão moral.
Dizia-se com razão, de Mademoisselle Sallé que: tous ses pas étaient de sentiments, e de Berenice que: tous ser dentr étaien des idées! (todos os seus passos eram sentimentos/todos o seus dentes ideias).
Ah, esse foi o pensamento absurdo que me destruiu, des idées! Ah, essa era a razão pela qual eu os cobiçava tão loucamente. Sentia que somente a posse deles me poderia restituir a paz para sempre, fazendo-me voltar à razão. E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas demoraram-se, foram embora. E o dia raiou mais uma vez e os nevoeiros de uma segunda noite de novo se adensaram em torno de mim. E ainda sentado estava, imóvel, naquele quarto solitário ainda mergulhado em minha meditação, ainda com os dentes mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes mutáveis e as sombras do aposento. Afinal, explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de consternação, ao qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e pesar.
Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de pé, na antecâmara, uma criada, toda em lágrimas que me disse que Berenice havia. . . morrido! Sofrera um ataque epiléptico pela manhã e agora, ao cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os preparativos do enterro terminados.
Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi com repugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era quarto vasto, muito escuro, e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.
Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo? Não vi moverem-se os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta realmente feita e o eco das últimas sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas; mas, deixando-as cair de novo, desceram sobre meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais estreita comunhão com a defunta.
Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde me fazia mal e imaginava que um odor deletério exalava já do cadáver. Teria dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mortuária, para respirar, uma vez ainda, o ar puro dos céus eternos. Mas, faleciam-me as forças para mover-me os joelhos tremiam e me sentia como que enraizado no solo contemplando fixamente o rígido cadáver, estendido ao comprido no caixão aberto.
Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror, ergui lentamente os olhos para ver o cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e por entre sua moldura melancólica os dentes de Berenice, brancos, luzentes, terríveis me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente, do leito, sem pronunciar uma palavra, como um louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte.
Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia que havia pouco despertara de um sonho confuso e agitado que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr do sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror, horror mais horrível porque vindo do impreciso, terror mais terrível porque saído da ambiguidade. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombra e com medonhas e ininteligíveis recordações.
Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Fazia a mim mesmo tal pergunta em voz alta, e os ecos do aposento me respondiam: Que era? a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e perto dela estava uma caixinha. Não era de forma digna de nota e eu frequentemente a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos por fim caíram sobre as páginas abertas de um livro, na sentença nelas sublinhada.
Eram as palavras singulares, simples, do poeta Ebn Zaiat: Dícebant míhi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meus aliquantulum fore levatas. Porque então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?
Uma leve pancada soou na porta da biblioteca. E, pálido como o brilhante de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou numa voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem que perturbara o silêncio da noite… todos em casa se reuniram. . . saíram procurando em direção ao som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao falar-me de um túmulo violado. . . de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas que ainda respirava, ainda ainda vivia!
Apontou para minhas roupas; estavam sujas de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; gravavam-se nela os sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede: era uma pá.
Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que nela se achava. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando- se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.
 
([Os Dentes de] Berenice - Edgar Allan Poe)

sábado, 28 de maio de 2011

A Mão do Macaco

Lá fora, a noite era fria e úmida, mas, na pequena sala de estar da Vila Lakesnam, as gelosias estavam cerradas e o fogo brilhava alegremente. Pai e filho estavam jogando xadrez, e o primeiro, que possuía ideias sobre jogo, envolvendo uma mudança radical de tática, empunharei em tão desesperados e desnecessários perigos que provocou comentários até da velha senhora de cabelos brancos, que estava fazendo, lacidamente, crochê perto do fogo.
- Escuta esse vento! - disse o Senhor White, que, tendo notado um erro fatal quando já era tarde demais, desejava evitar, com habilidade, que o filho o notasse também.
- Estou escutando - disse o outro, observando atentamente o tabuleiro, ao mesmo tempo que estendia a mão. Xeque!
- Estava achando muito difícil que ele viesse esta noite - disse o pai, com a mão erguida sobre o tabuleiro.
- Matei - prosseguiu o filho.
- Isso é o que tem de pior, viver assim tão afastado! - vociferou o Senhor White, com súbita e inesperada violência;
- De todos os lugares idiotas, lamacentos e fora de mão para se morar, este é o pior. O caminho é um atoleiro e, a estrada, um rio. Não sei o que essa gente pensa. Acho que, porque somente duas casas da estrada estão alugadas, entendem que não tem importância.
- Não te importes querido - disse-lhe a esposa, conciliatoriamente; - talvez ganhes a próxima partida.
O Senhor White ergueu bruscamente a vista, mesmo em tempo de interceptar um olhar de compreensão, trocado entre mãe e filho. As palavras morreram-lhe nos lábios, e escondeu um sorriso contrafeito, na barba rala, grisalha.
- Aí está ele! - exclamou Herbert White, ao ouvir o portão bater com estrondo e pesados passos, que vinham em direção à porta. O velho levantou-se com solicitude hospitaleira, e, enquanto abria a porta, puderam ouvi-lo lastimando-se do tempo, com o recém-chegado. Este também se lastimou, de maneira que a Senhora White disse: - Chut! Chut!. e tossiu de leve, quando o marido entrou no aposento, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos salientes e faces rubicundas.
- Sargento-major Morris - disse, apresentando-o.
O major trocou apertos de mão, e, tomando a cadeira oferecida junto ao fogo, observou, com satisfação, que o anfitrião trazia uísque e copos e punha uma pequena chaleira de cobre no fogo.
Ao terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes e começou a falar, enquanto o pequeno circulo da família olhava, com agudo interesse, aquele visitante de terras longínquas, que encostava os ombros robustos no espaldar da cadeira, falando de cenas estranhas e feitos denodados, de guerras e pestes e de povos exóticos.
- Vinte e um anos disto - disse o Senhor White, acenando, com a cabeça, para a esposa e o filho. - Quando partiu, era um belo moço, no armazém. Agora, olhem para ele.
- Não parece ter-se dado muito mal - observou a Senhora White delicadamente.
- Eu gostaria de ir à Índia, também, - disse o velho cavalheiro - só para ver como aquilo é, sabem?
- Foi melhor ficar por aqui mesmo - retrucou o major, abanando a cabeça. Pousou o copo vazio e, suspirando de leve, sacudiu-a outra vez.
- Gostaria de ver aqueles velhos templos, e faquires, e pelotiqueiros - insistiu o velho. - O que era que ia começar a contar-me no outro dia, a respeito de uma mão de macaco, ou coisa que o valha, Morris?
- Nada - respondeu o soldado, muito depressa. - Pelo menos, nada que valha a pena ouvir-se.
- Mão de macaco? - indagou a Senhora White, com curiosidade.
- Bem, apenas o que se poderia chamar magia, talvez - respondeu o major, de maneira vaga.
Seus três ouvintes curvaram-se para a frente, interessados.
O visitante, alheadamente, levou o copo vazio aos lábios e depois tornou a pousá-lo. O anfitrião encheu-lhe de novo.
- A simples vista - disse o major, remexendo no bolso – é apenas uma pequena mão comum, seca e mumificada.
Tirou qualquer coisa do bolso e exibiu-a. A Senhora White recuou, com uma careta, mas o filho, pegando no objeto, examinou-o com curiosidade.
- E que é que há de especial nela? - perguntou o Senhor White, tomando-a das mãos do filho e pousando-a sobre a mesa, depois de examiná-la.
- Possui um encantamento, que lhe foi posto por um velho faquir - explicou o major - um homem muito velho. Queria mostrar que o destino seque a vida dos homens e que aqueles que interferem com ele o fazem para seu próprio mal. Pôs-lhe um encantamento, para que três homens distintos pudessem satisfazer, cada um, três desejos.
Suas maneiras eram tão impressionantes que os ouvintes tinham a consciência de que seus risos alegres soavam um pouco falsos.
- Bem, e por que não formula três desejos, senhor? – perguntou Herbert White, inteligentemente.
O soldado olhou-se, da maneira que um homem de meia idade olha para a mocidade presunçosa.
- já formulei. . . - disse, devagar, e o seu rosto corado empalideceu.
- E obteve, realmente, que esses três desejos se realizassem? - perguntou o Senhor White.
- Obtive - respondeu o major, e o copo tilintou, de encontro aos seus dentes brancos.
- E alguém mais já desejou?
- O primeiro homem também satisfez seus três desejos, sim. . . - foi a resposta. - Não sei quais foram os dois primeiros, mas o terceiro foi a morte. Foi assim que obtive a mão.
Seu tom era tão grave que um silêncio caiu sobre o grupo.
- Se já obteve os seus três desejos, não lhe serve para mais nada; então, Morris, - disse o velho, por fim, para que a conserva?
O soldado abanou a cabeça.
- Fantasia, suponho - disse, devagar. - Tive uma vaga ideia de vendê-la, mas não creio que o faça. já causou infortúnios demais. Além disso, ninguém a compraria. Alguns acham que é uma história fantástica, e os que acreditam alguma coisa dela, querem experimentar primeiro e pagar-me depois.
- Se pudesse formular outros três desejos, perguntou o velho, fitando-o atentamente fa-lo-ia?
- Não sei, - respondeu o outro não sei.
Pegou na mão, e, balançando-a entre o indicador e o polegar, jogou-a de súbito no fogo. White, com um pequeno grito, curvou-se e tirou-a.
- É melhor que a deixe queimar-se - sentenciou o soldado, solenemente.
- Se não a quer, Morris, - pediu o velho - dê-ma.
- Não farei isso - respondeu o amigo, com rabugice. Atirei-a ao fogo. Se a quiser guardar, não me censure pelo que possa acontecer. Jogue-a no fogo de novo, como um homem de juízo.
O outro abanou a cabeça e examinou atentamente sua nova aquisição.
- Como se faz? - perguntou.
- Segura-se levantada, com a mão direita, e faz-se o pedido em voz alta - disse o major - mas, previno-o... contra as consequências.
- Parece coisa das mil e uma noites! - exclamou a Senhora White, enquanto se levantava e começava a preparar tudo para a ceia. - Não achas que poderias desejar quatro mãos para mim?
O marido tirou o talismã do bolso e, então, os três desataram a rir, enquanto o major, com um ar de susto no rosto, o segurava pelo braço.
- Se quer formular um pedido, - disse-lhe, severamente - faça-o de maneira inteligente,
O Senhor White deixou cair de novo o talismã no bolso, e, chegando às cadeiras, conduziu o amigo à mesa. Com o entretenimento da ceia, o objeto foi em parte esquecido, e, depois, os três ficaram sentados, escutando, atentos, uma segunda série das aventuras do soldado da índia.
- Se a história a respeito da mão do macaco não for mais verdadeira do que as outras que ele nos esteve contando - disse Herbert, quando a porta se fechou às costas do hóspede, apenas em tempo para este apanhar o último trem - não conseguiremos grande coisa com ela.
- Deste-lhe alguma coisa por ela, meu velho? - perguntou a Senhora White, olhando para o marido, com atenção.
- Uma bagatela - respondeu ele, corando de leve. – Não queria aceitar, mas obriguei-o. E insistiu de novo comigo para que a jogasse fora.
- Não faça isso! - exclamou Herbert, com pretenso horror.
- Ora essa! Vamos ficar ricos, famosos e felizes. Deseje ser imperador, papai, para começar; depois, não poderá ser dominado pela esposa. Correu em volta da mesa, perseguido pela indignada Senhora White, armada de uma vassoura.
O Senhor White tirou a mão de macaco do bolso e olhou para ela, indeciso.
- Não sei o que hei de desejar, esta é a verdade... disse lentamente. - Parece-me que tenho tudo o que quero.
- Se liquidasse a hipoteca da casa, seria completamente feliz, não é verdade? sugeriu Herbert, pousando dou-lhe a mão no ombro. Pois bem, deseje duzentas libras, então; é justamente o que falta.
O pai, sorrindo, meio envergonhado da própria credulidade, ergueu o talismã, enquanto o filho, com ar solene, que um piscar de olhos à mãe desmentia, sentava-se ao piano e fazia soar alguns acordes majestosos.
- Desejo ter duzentas libras - pediu o velho, em voz alta.
Uma bela ressonância do piano saudou aquelas palavras, interrompida por um grito assustado do velho. O filho e a esposa correram para ele.
- Mexeu-se!... - exclamou ele, com um olhar de receio para o objeto que jazia no chão. - Quando formulei o desejo, contraiu-se-me na mão qual uma cobra.
- Bem, não vejo o dinheiro... e aposto que nunca o verei atalhou o moço. Deve ter sido impressão tua, meu velho - disse a esposa, olhando para ele com ansiedade.
O marido abanou a cabeça.
- Não importa, porém. Não aconteceu nada de mau, mas levei um choque, assim mesmo.
Sentaram-se novamente, junto ao fogo, enquanto os dois homens acabavam de fumar seus cachimbos. Lá fora, o vento estava mais forte do que nunca, e o velho teve um sobressalto nervoso ao som de uma porta batendo no primeiro andar. Um silêncio insólito e deprimente pesou sobre os três, e prolongou-se até que o casal de velhos se levantou para recolher-se.
- Espero que encontre o dinheiro amarrado em um grande maço, no meio da cama, - gracejou Herbert, ao curvar-se para dizer-lhes boa noite - e qualquer coisa terrível agachada em cima do guarda-roupa, espiando-o, enquanto o senhor se apossa da fortuna mal ganha.
Na manhã seguinte, na claridade do sol de inverno iluminando a mesa do café, Herbert riu-se do susto dos Pais. Havia um ar de saudável banalidade, no aposento, que faltava na noite anterior, e a pequena mão de macaco, suja e enrugada, estava pousada sobre o aparador, com um pouco caso que não demonstrava grande fé nas suas virtudes.
- Suponho que todos os soldados são a mesma coisa - disse a Senhora White. - Que ideia, a nossa, de dar ouvidos a tais contrassensos! Como poderiam realizar-se simples desejos, hoje em dia? E, se pudessem, como lia, viam defazer-te mal duzentas libras, meu velho?
- Podiam cair-lhe do céu na cabeça - chasqueou o frívolo Herbert.
- Morrís contou que as coisas aconteciam tão naturalmente - disse o pai - que se poderia, querendo, atribuí-las a mera coincidência.
- Bem, não vá gastar o dinheiro todo antes que eu esteja de volta - recomendou Herbert, levantando-se da mesa. - Receio que se transforme em um mesquinho avarento e que tenhamos de desconhecê-lo.
A mãe riu-se, e, acompanhando-o até a porta, observou-o enquanto seguia pela estrada abaixo, e depois, voltando à mesa do café, divertiu-se muito às custas da credulidade do marido. O que não a impediu de precipitar-se para a porta, quando o carteiro bateu, e nem tampouco de resmungar qualquer coisa sobre majores reformados, de hábitos biliosos, quando verificou que o correio lhe trazia apenas uma conta do alfaiate.
- Herbert vai dizer mais algumas pilhérias, espero, quando voltar - disse ela, quando se sentavam para jantar.
- Imagino que sim, - concordou o Senhor White, - mas, servindo-se de cerveja, seja como for, aquela coisa mexeu-se na minha mão; isso eu posso jurar.
- Pensaste que se moveu - observou a velha senhora, meigamente.
- Digo que se mexeu! - replicou o outro. - Não resta a menor dúvida. Eu tinha... que foi?
A esposa não respondeu. Estava observando os misteriosos movimentos de uni homem, lá fora, que, espreitando de maneira indecisa para a casa, parecia estar tentando resolver-se a entrar. Em conexão mental com as duzentas libras, notou que o estranho estava bem vestido e usava uma cartola de seda, brilhante e nova. Três vezes parou ao portão, mas, depois, se afastou de novo. Da quarta vez, parou com a mão pousada nele, e, com súbita resolução, abriu-o e caminhou em direção à casa. A Senhora White, no mesmo instante, levou as mãos às costas e, desatando apressadamente os cordões do avental, Colocou aquela útil peça de roupa sob a almofada da sua cadeira. Trouxe o estranho, que parecia pouco à vontade, para dentro do aposento. Ele olhava furtivamente para a Senhora White, e escutava, com ar preocupado, enquanto a velha senhora pedia desculpas pela aparência da sala, e pelo sobretudo do marido, um agasalho que, geralmente, ele reservava para o jardim.
Ela esperou, tão paciente- mente quanto o seu sexo o permitia, que o homem desembuchasse o que tinha para dizer, mas, a princípio, ele conservou-se num silêncio embaraçado.
- Pediram-me... para vir aqui - disse, por fim, e curvou-se para tirar um fiapo de algodão das calças. - Venho de parte - de Naw & Naggins.
A velha senhora sobressaltou-se.
- Que foi? - perguntou, com a respiração alterada. Aconteceu alguma coisa a Herbert? Que é? Que é? O marido interpôs-se.
- Vamos, vamos, minha velha - disse apressadamente. - Senta-te, e não tires conclusões antecipadas. Não é portador de más notícias, estou certo, senhor - e observava o outro atentamente.
- Sinto muito. . . - começou o visitante.
- Está ferido? - perguntou a mãe.
O visitante curvou-se, confirmando.
- Gravemente ferido, mas já não sofre coisa alguma.
- Oh, graças a Deus! - exclamou a velha senhora, juntando as mãos. - Graças a Deus, por isso. Graças...
Interrompeu-se de súbito, ao perceber o sinistro signo, ficado da afirmativa do outro e viu a terrível confirmação dos seus receios na cara compungida que ele fez. Suspendeu a respiração, e voltando-se para o marido, menos vivo em compreender do que ela, pousou a mão trêmula na dele.
Houve um longo silêncio.
- Foi colhido por uma máquina disse o visitante por fim, em voz baixa.
- Colhido por uma máquina repetiu o Senhor White, de maneira vaga. - Sim.
Ficou sentado, olhando confusamente pela janela; e, tomando a mão da esposa entre as suas, apertou-a como costumava fazer nos velhos tempos em que se namoravam, quase quarenta anos atrás.
- Era o único que nos restava - disse, voltando-se gentilmente para o visitante. - É duro.
O outro tossiu, e, levantando-se, caminhou lentamente até à janela.
- A firma encarregou-me de transmitir-lhes a sua sincera simpatia pela grande perda que sofreram - disse, sem voltar a olhar. - Peço-lhes para compreenderem que sou apenas um empregado e que estou obedecendo a ordens recebidas.
Não houve resposta; a face da anciã estava branca, os olhos vítreos, a respiração mal audível; no rosto do marido, havia uma expressão que devia ser semelhante à do seu amigo major ao entrar pela primeira vez em ação.
- Devo-lhe dizer-lhes que Naw & Naggins negam qualquer responsabilidade - continuou o outro. - Não admitem qualquer obrigação, mas, em consideração aos serviços prestados por seu filho, desejam oferecer-lhes certa importância em dinheiro, a título de compensação.
O Senhor White deixou cair a mão da esposa, e, pondo-se em pé, fitou o visitante com um olhar horrorizado. Seus lábios secos balbuciaram a palavra:
- Quanto?
- Duzentas libras - foi a resposta.
Inconsciente do grito da esposa, o ancião sorriu debilmente, estendeu as mãos feito um homem cego, e caiu, qual um farrapo, inerte, no assoalho.

No vasto cemitério novo, a umas duas milhas de distância, os anciãos enterraram o morto querido e voltaram para a casa, agora imersa em sombras e silêncio. Acontecera tudo tão rapidamente que, a princípio, mal podiam compreende-lo, e tinham ficado em um estado de expectativa, como se alguma coisa mais devesse acontecer - alguma coisa que aliviasse aquela carga demasiado pesada para os seus velhos corações suportarem.
Mas os dias se passaram. E a cruel expectativa cedeu lugar à resignação - a resignação irremediável dos velhos, às vezes erroneamente chamada apatia. As vezes, mal trocavam uma palavra, porque agora não tinham sobre que falar, e seu dias eram longos e enfadonhos.
Foi cerca de uma semana depois daquilo que o ancião acordando de súbito, uma noite, estendeu a mão e verificou que se achava sozinho na cama. O quarto estava em trevas e vinha da janela um som de soluços abafados Sentou-se na cama e escutou.
- Mais frio estará sentindo meu filho - respondeu a anciã, e soluçou mais alto.
O som dos soluços morreu nos ouvidos dele. A cama estava quente e, seus olhos, pesados de sono. Dormitou um pouco, agitado, e depois adormeceu, até que um súbito grito selvagem da esposa o acordou em sobressalto.
- A mão do macaco! - gritava ela, selvagemente. A mão do macaco!
Ele despertou, alarmado.
- Onde? Onde está? Que foi que aconteceu?
Ela veio cambaleando pelo quarto, em direção a ele.
- Quero-a - disse, calmamente. - Tu não a destruíste?
- Está na sala, na prateleira - respondeu ele, muito admirado. - Por quê?
Ela chorava e ria-se ao mesmo tempo e, curvando-se, beijou-o na face.
- Só agora me lembrei disso - disse, histericamente. – Por que não me lembrei antes? Por que não te lembraste tu?
- Lembrar de quê?
- Dos outros dois desejos - respondeu ela, rapidamente. - Só formulamos um.
- E não foi bastante? - perguntou ele, com violência.
- Não - exclamou ela, triunfalmente. - Formularemos mais um. Vai lá embaixo. traze-a depressa, e manifesta o desejo que teu filho esteja vivo de novo.
O homem sentou-se na cama e afastou as cobertas de sobre os membros trêmulos.
- Santo Deus, estás louca! - exclamou, aterrado.
- Vai buscá-la, - insistiu ela. - Vai busca-la e pede. Oh, meu filho, meu filho!
O marido riscou um fósforo e acendeu a vela.
- Volta para a cama - disse, irresolutamente. - Não sabes o que estás dizendo.
- Obtivemos a realização do primeiro desejo, - disse a anciã, com fervor; - por que não havemos de obter o segundo?
- Uma coincidência... gaguejou o ancião.
- Vai buscá-la - gritou a anciã, arrastando-o para a porta.
Ele desceu, no escuro, tateou o caminho para a sala e depois para o aparador. O talismã estava no seu lugar, e um horrível medo de que o desejo não formulado trouxesse o filho mutilado à sua presença, antes que ele pudesse fugir do aposento, apoderou-se do seu espírito. Susteve a respiração, quando viu que perdera a direção da porta. Com a testa úmida de suor, encontrou o caminho em volta da mesa, e foi-se arrastando, ao longo da parede, no estreito corredor, com aquela coisa nojenta na mão. Até o rosto da esposa pareceu-lhe mudado, quando entrou no quarto. Estava branco e expectante, e, para seu receio, parecia ter um ar sobrenatural. Teve medo dela.
- Pede! - gritou ela, em voz forte.
- É uma tolice inútil - esquivou-se ele.
- Pede! - repetiu a esposa. E ergueu a mão. - Quero meu filho vivo de novo.
O talismã caiu no assoalho e o velho fitou-o, estremecendo.
Depois, deixou cair-se, tremendo, em uma cadeira, enquanto a esposa, com os olhos ardendo, se dirigia à janela e levantava a gelosia. Ficou sentado até sentir-se enregelado de frio, olhando de vez em quando para a figura da anciã, espreitando para fora pela janela. O coto da vela, que ardera até abaixo do anel do castiçal de porcelana, lançava sombras oscilantes sobre o teto e as paredes, até que, com uma palpitação mais forte do que as outras, extinguiu-se. O ancião, com indizível sensação de alívio pelo fracasso do talismã, voltou à cama, e, um minuto ou dois após, a anciã veio, silenciosa e apática, para junto dele. Nenhum dos dois falou e ambos ficaram deitados silenciosamente, escutando o tique-taque do relógio. Um degrau da escada estalou e um camundongo assustado correu ruidosamente por dentro da parede.
A escuridão era opressiva; depois de ficar algum tempo deitado, reunindo coragem, o marido pegou na caixa de fósforos e, riscando um, desceu as escadas para buscar
uma vela.
No último degrau, o fósforo apagou-se, e ele parou para acender outro, mas, naquele momento, uma batida tão leve e furtiva que mal era audível, soou na porta da rua.
Os fósforos caíram-lhe das mãos. Ficou imóvel, com a respiração suspensa, até que a batida se repetiu. Então, voltou-se e correu velozmente até o quarto, fechando a porta atrás de si. Uma terceira batida ressoando pela casa.
- Que foi isto? - exclamou a anciã, sobressaltando-se.
- Um rato - disse o ancião, em voz trêmula. - Um rato. Passou por mim, nas escadas.
A esposa sentou-se na cama, escutando. Uma batida forte ressoou pela casa.
- É Herbert! - gritou ela. - É Herbert!
Correu para a porta, mas o marido colocou-se diante dela e, agarrando-a pelo braço, segurou-a com força.
- Que vais fazer? - sussurrou, asperamente.
- É meu filho, é Herbert! - gritou ela, lutando mecanicamente. - Tinha-me esquecido de que eram duas milhas de caminho. Por que me seguras? Solta-me! Tenho de abrir a porta.
- Pelo amor de Deus, não o deixes entrar! - disse o ancião, tremendo.
- Tens medo do teu próprio, filho! - exclamou ela, debatendo-se. - Deixa-me ir! já vou, Herbert, já vou!
Houve outra batida, e mais outra. A anciã, num súbito arranco, libertou-se a saiu correndo do quarto.
O marido seguiu-a até ao patamar e chamou-a insistente mente, enquanto ela corria escadas abaixo. Ouvia a corrente de segurança ser retirada e a lingueta da chave abrir-se, rangendo. Depois, a voz da anciã, áspera e palpitante.
- O ferrolho! - gritou alto. - Desce, não posso atingi-lo!
Mas o marido estava de gatas, arrastando-se ferozmente pelo chão, à procura da mão do macaco. Se pudesse ao menos encontrá-la, antes que aquela horrível coisa lá de fora entrasse! Uma verdadeira saraivada de batidas repercutiu pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira, que a esposa estava colocando junto da porta. Ouviu, ainda, o ruído do ferrolho ao ser aberto lentamente; no mesmo instante, achou a mão do macaco, e, freneticamente, bradou seu terceiro e último, desejo.
As batidas pararam de súbito, embora o seu eco inundasse, ainda, a casa. Ouviu a cadeira sendo arrastada para trás e a porta abrir-se.
Um vento frio encanou pelo vão das escadas, mas o longo e sonoroso lamento de decepção e agonia da esposa deu-lhe coragem para descer até onde ela estava, e abriu a porta por trás dela. O lampião, que piscava em frente, mostrou-lhe a estrada, calma e deserta.


(William Wymark Jacobs)