domingo, 22 de maio de 2011

Insurreição


A mesa está posta. Há pães, assados, frutas e vinho. Um banquete digno de reis. 
Não consigo comer. Embora estivesse acostumado a refeições mais simples e piores, não tenho fome.
Volto ao quarto. O arcebispo – um homem velho, calvo, de cabelos e barbas grisalhas, gordo e de aparência serena ao mesmo tempo que severa – parecia recobrar os sentidos. Amarro os seus braços nos da poltrona.
Não estou nem um pouco arrependido, do que já fiz e do que ainda estou por fazer. Sinto-me leve… E o que é melhor: não mais ouço aqueles terríveis gritos…
Monstro, eu? Talvez. Mas tenho que fazê-lo. Além do quê, meus atos não serão diferentes dos da Vossa Excelência Reverendíssima…
E, pensando bem… o que estou por fazer é algo relativamente bom. O homem diante de meus olhos já matou centenas, acusando a todos de bruxaria. Pessoas que eu conhecia. E que eu sabia não fazerem nada de errado.
As consequências dos atos monstruosos do arcebispo me trouxeram até aqui – aquele sorriso… e os gritos…!
Ele desperta. Encara-me profundamente nos olhos. Mas não grita. Seu semblante é indiferente.
Revendo os fatos até chegar aqui…

Tudo começou naquela tarde aterrorizante. A bela e inocente jovem sendo queimada viva – ah, os gritos…! E sua linda imagem sendo decomposta…! Um anjo em chamas…! – E aquele demônio sorrindo!
Não pude mais dormir, desde aquele dia. Sempre que fechava os olhos, via aquele sorriso diabólico - sútil e perverso -, e a imagem da jovem se desfigurando…
Mas o pior de tudo eram os gritos. Ressoavam dia e noite em minha cabeça, sem parar. Uma semana toda com suas reverberações. Não sei como resisti sem enlouquecer… - ou enlouqueci?
De qualquer forma, os gritos intensificavam-se quando eu via o arcebispo ou quando passava em frente à catedral. Queriam dizer-me algo. E na manhã de hoje me resolvi por parar e ouvir…
Os gritos eram disformes. E mesmo sem dizer coisa alguma, diziam-me algo. Criavam imagens em minha cabeça. Imagens vivas. Imagens de um sorriso em chamas. Imagens de morte. E se repetiam constantemente, sempre aumentando o seu volume e intensidade. Sem parar. Até me convencerem. E então se abrandaram. Porém não cessando.
A partir daí, precisava arquitetar os meus planos. Como e onde pegaria o arcebispo sozinho? Nada me ocorria. Em todas as ideias que me ocorria, estava sempre rodeado de bispos e fiéis.
E então a “voz” dos gritos fez-se ouvir, novamente. Uma nova imagem se criou: uma grande festa na praça da catedral onde só se encontravam os nobres e as pessoas de posse; os bispos com eles festejando; uma janela esquecida aberta; o arcebispo sozinho em seu quarto se arrumando demoradamente; o relógio da catedral indicava às vinte horas – a hora em que eu deveria agir. E novamente os gritos se abrandaram.
O dia se arrastou pesada e lentamente até a chegada do entardecer. Não saí de casa. E também não consegui comer nada. Embora nervoso com o que teria que fazer, estava disposto a cumprir minha designação.
Um turbilhão rodava em minha mente. Não pensava em mais nada, a não ser no que teria que fazer. E como o faria?
O tempo passou até os grandes sinos da catedral soarem dezenove horas. Era a hora de começar a agir.
Minhas pernas estavam moles, o passo vacilante. Mesmo assim tomei meu rumo, que parecia não mais ter fim.
Aqui chegando, a janela apontada pela “voz” estava aberta. Entrei por ela. Podia-se ouvir ao longe – do lado oposto ao que eu estava – um som musical. Era a festa dos poderosos. Esgueirei-me até os aposentos do arcebispo, que se encontrava em uma das torres da catedral. Ele se arrumava de costas para a porta, que se encontrava aberta – alvo fácil. Acertei-o com um pequeno castiçal que se encontrava próximo. Desmaiou.
Amarrei-o em uma poltrona. Não sabia o que fazer.
Fechei e tranquei a porta. Fui até a sala de jantar de seus aposentos…

Por fim, após longo tempo me olhando friamente nos olhos, diz calmamente:
– O que o traz aqui, meu filho?
Não sei o que dizer. Desvio o olhar e continuo calado.
Seu quarto é enorme e está em perfeito estado de conservação, ostentando riquezas. Mesmo assim, está em reforma. Há uma banca de carpintaria montada próxima à janela. Pego um martelo.
– O que pretende fazer com isso, meu jovem?
Não o olho
– Quer joias, terras ou riquezas? – e me lançando um olhar desafiador – ou veio para me matar? – e pôs-se a gargalhar.
Olhei-o de relance. A situação, em vez de assustá-lo, o divertia.
– Não tem coragem nem de, ao menos, olhar em meus olhos ou dirigir-me a palavra. O que dirá, então, me matar?  – e continuou gargalhando.
Não sei o que fazer. Mas não irei voltar atrás.
Pego uma vela já acesa e me ponho a acender algumas outras. O quarto fica bem iluminado. Volto a encará-lo. Posso ver claramente as suas feições, agora. Traz aquele sorriso sutil e menosprezante estampado na cara.
– Vossa Excelência Reverendíssima mandou queimar uma jovem inocente… – digo após um tempo encarando-o – Acusou-a, falsamente, de bruxaria.
– Refere-se à bela jovem da semana passada, acredito eu – disse ele, mal esperando eu terminar de falar e de forma pensativa. E, com um sorriso amarelo estampado na cara – uma jovem firme, de coragem e íntegra. Não aceitou se deitar comigo mesmo depois de eu ameaçá-la, dizendo que a acusaria de bruxaria e que a condenaria à morte o mais rápido que pudesse – e, escarnecendo-me – E o que poderia um homem tão miserável como você fazer? –erguendo a voz – Homens mais poderosos e corajosos já estiveram em seu lugar. E não me fizeram absolutamente nada. Nada! Tiveram medo. Medo de deus. Medo de mim!
Havia uma quantidade enorme de prepotência em suas palavras. Julgava-se deus. Ou superior.
Aproximei-me dele.
– Desamarre-me agora, cria do demônio! Ou irá à fogueira ainda hoje, maldito! – esbravejava.
– Aí se encontrará  com sua prostitutazinha de olhos verdes!
Suas ultimas palavras irritaram-me. O coração em disparada. O ódio à flor da pele.
Ergo o martelo que segurava e desço-o com força e raiva em seu dedo anelar da mão esquerda, que estava espalmada no braço da poltrona, no qual usava o anel de selagem. Com a força do impacto, o aro do anel rasga sua pele e carne, esmigalhando os ossos. O dedo fica pendurado por uma pequena tira de couro e carne. O urro que dá é assustador. Mas ninguém o ouve. A festa e a distância de seu quarto se encarregam desse detalhe.
Sua cara, agora, é de terror. E isso me entusiasma, levando-me ao êxtase.
– O que a Vossa Excelência Reverendíssima disse sobre eu não ter coragem? – digo ironicamente.
– Por favor! Perdoe-me, filho! Posso fazê-lo rico! Terás tudo o que quiser! Não irei acusá-lo de nada! Será visto como herói, se quiseres! Mas poupe-me, por favor! Eu lhe imploro, meu filho! – clamava ele, repetitiva e desesperadamente.
Seus clamores irritam-me ainda mais. Com uma martelada, esmago-lhe a ponta do dedo indicador direito. Rio enquanto ele grita e chora, imobilizado, sem nada poder fazer.
Sobre uma escrivaninha, ao lado de sua gigantesca cama, há um abridor de envelopes. Apanho-o e cravo-lhe no antebraço direito. Puxo-o até o pulso, abrindo-lhe uma enorme fenda. Seus gritos são desumanos.
Com uma de suas camisas, estanco-lhe o sangue, amarrando-a firmemente próxima ao seu ombro. Não quero que ele morra logo e interrompa a minha diversão.
Utilizando-me, novamente do martelo, arrebento-lhe a boca, juntamente com os dentes em um único golpe.
Cansei-me de seus gritos.
Vou até a sala de jantar e apanho duas facas que estavam sobre a mesa. Agonizando de dor, com a boca escancarada, enfio-lhe uma delas em sua língua, que se contorce, e, com a outra, corto-a vagarosamente.
Seus gritos agora são mudos. Contorce-se na cadeira.
Apanho um prego da bancada. Cravo-lhe no olho direito e puxo-o transversalmente, o arrancando.
Seu estado era deplorável. Não mais se assemelhava com a figura com que me deparara anteriormente. E isso me entusiasmava.
Excitava-me continuar com meus atos de tortura… E continuei. Era como pintar um quadro… Pensava em cada detalhe… e não conseguia parar…
E então, quando já estava quase sem forças e o corpo, em minha frente, disforme, resolvi por terminar de vez com seu sofrimento: rasguei-lhe o pescoço e o atirei do alto da torre.
Depois de ter feito todas essas coisas, sinto-me leve e livre. E com fome.
Os gritos que antes me atormentavam, cessaram. Por enquanto…

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